Depois de muito tempo buscando e colecionando documentos e informações, eu
tinha um mosaico histórico da família. Eu sabia de onde eles vieram e quando
chegaram ao Brasil. Giacomo Sarti, Felice Feltrin e Felice ‘Bon’ Tiozzo com seu
filho Carlo Tiozzo foram os emigrantes que fizeram a travessia do oceano
Atlântico a fim de iniciar uma nova vida e formar novos clãs no Brasil. Eles
tornaram-se os patriarcas de novas famílias aqui.
Segundo o dicionário1, patriarca é um
chefe de família, por extensão de sentido pessoa mais velha que se respeita,
obedece e venera e que tem grande família. Neste sentido, os três emigrantes da
minha família eram patriarcas. Felice Feltrin veio casado com Luigia Gabrieli e
seus filhos e esses aqui se casaram e tiveram vários filhos. Os outros dois emigrantes,
Giacomo e Carlo vieram jovens, ainda solteiros. Aqui casaram-se e tornaram-se
patriarcas. Farei um breve relato de cada um deles, baseado em fatos e nas
informações coletadas nos documentos encontrados. Mais à frente, em outros
capítulos, darei um pouco de asas a imaginação e preencherei as partes
faltantes com historias que criei.
Giacomo Sarti
Giacomo Sarti, nasceu no dia 29/11/1864 em um dia frio de outono na
cidade de Castelguglielmo, Rovigo, Itália. Segundo a lista di leva, seu nome
era Giovanni Sarti. Como é o único documento onde consta o nome Giovanni,
é possível que seu nome completo fosse Giovanni Giacomo Sarti, ou talvez
Giacomo Giovanni Sarti. Nessa lista de leva, conta os nomes de seus pais, Giuseppe
Sarti e Luigia Munari.
Giuseppe Sarti e Luigia Munari nasceram em 1829, pois tinham 35 anos quando Giacomo Sarti nasceu. Os nome do pai de Giuseppe era Giovanni Sarti, mas não sei dizer qual o nome de sua mãe. Ele tinha um irmão chamado Francesco Sarti, três anos mais novo e o Carlo Sarti, que foi casado com Rosa Viaro. No dia 24/12/1873 Luigia Munari deu à luz a uma menina. O parto foi em casa com a ajuda da levatrice comunale (parteira municipal) de Castelguglielmo, que foi também testemunha no registro. Estava tão frio que seu pai, Giuseppe só foi registrá-la no dia 28/12/1873. Chamou-a de Ângela Sarti. Mas Luigia faleceu duas semanas depois do parto, no dia 06/01/1874.
Lembrei-me de uma história que li no livro Polenta e Liberdade. Essa história se
passa no norte da Itália por volta de 1850, durante o inverno gelado. Os
personagens são camponeses que além do frio, sofrem com a falta de comida e
conforte. O personagem Rodolfo acorda e vê Tineto, um pequeno bebê roxo e
respirando com dificuldade, o coração acelerado, olhos lustros. Todos os membros da família eram chamados
para ajudar de alguma forma, a nona para fazer um chá, outro para ascender o
fogo na cozinha. Traziam o scaldaleto,
um aquecedor de cama, cheio de brasas para aquecer o quarto. Faziam isso
somente quando havia alguém doente pois não tinham lenha suficiente para
ascender o fogo. O nono fez uma compressa de sementes de linho para aquecer o
peito do garotinho e deram-lhe chá, mas ele não reagiu. A mãe, desesperada pede
por um médico. Era noite e metros de neve cobria o solo do lado de fora. Como
chamar o médico? A família morava no campo. Não haviam ainda inventado
telefone. Alguém teria que pegar um cavalo, atrelá-lo a uma charrete e ir até a
cidade tentar convencer o médico a voltar a casa no campo. Não havia outro
jeito, deixaram para o dia seguinte. Podiam ajoelhar em volta do berço e rezar,
e assim o fizeram. Na manhã seguinte, o médico chega e desengana o menino: “Não
tem cura. Pontada dupla e empedramento do estomago.” Devia ser uma pneumonia
dupla. Ele cobrou pelo serviço e foi embora. Durante o dia, vizinhos, parentes,
amigos visitavam o nenê. Ao entardecer estava morto. O sino da igreja anunciou
a morte de Tineto, como já anunciara a morte de tantos outros bebês naquele
inverno. Pela manhã foi levado a igreja, foram feitas as orações de costume, depois
foi carregado para o cemitério e enterrado. Sobre o túmulo, foi colocada a bandeirinha
branca junto a mais dezesseis que lá estavam farfalhando. Em cada uma delas uma
criança vítima do frio e da fome. 2
Ângela Sarti, a irmã de Giacomo, se estivesse viva,
teria 15 anos de idade em 1888, quando ele partiu de Castelguglielmo para o Brasil.
Mas seu nome não está na lista dos passageiros que desembarcaram em Santos. Outras
informações interessantes constam nesse registro de nascimento que mostram um
pouco do perfil de Giuseppe Sarti, pai de Giacomo e Ângela. Ele era analfabeto,
trabalhava como ‘contadino’, camponês
e residia na cidade de Castelguglielmo. Até o nome da rua onde ficava sua casa,
quando nasceu Ângela Sarti, é mencionado: Via Ramina Campagnola, número 98A. Consta
no documento que Francesco, irmão de Giuseppe também era ‘illeterato’, analfabeto.
Em 1888, Giacomo tinha 24 anos. Em alguns documentos
encontrados no Brasil, dizia que ele era analfabeto, mas há a possibilidade
dele ter sido considerado analfabeto aqui por não saber ler e escrever em
português. Era ‘contadino’ (camponês)
como seu pai, acostumado a trabalhar na lavoura. Quando emigrou da Itália para
o Brasil, ele veio junto à família do seu primo Abramo Sarti e sua tia Rosa
Viaro. Acredito que, depois da morte de Luigia Munari, sua mãe, Giacomo foi
criado pela tia Rosa Viaro. Cresceu ao lado do primo, Abramo que era apenas um
ano mais novo do que ele. Rosa Viaro já era viúva de Carlo Sarti quando veio
para o Brasil com seu filho Abramo e a filha Maria.
O fato de Giacomo ser solteiro e emigrar junto com o primo e sua tia me faz pensar na possibilidade de que em 1888 ele também era órfão de pai. Existe a possibilidade de que seu pai tenha ficado com outros membros da família como seu irmão Francesco, mas a primeira hipótese ganha mais força porque no registro de nascimento de Linda Sarti, a filha de Giacomo Sarti e Amabile Feltrin, nascida em 08/07/1894 em Sertãozinho, SP diz que seus avós eram já falecidos.
Seu navio partiu do porto de Gênova. Ele e o grupo
com quem viajava, devem ter seguido de trem à vapor de Rovigo até o porto de
Genova. Embarcaram e seguiram viagem na terceira classe do navio La France,
pois o documento encontrado no museu da Imigração do estado de São Paulo indica
que eram imigrantes introduzidos pelo governo geral. Isto quer dizer que a
passagem foi paga pelo governo brasileiro, que só pagava passagens na terceira
classe.
Estavam no mesmo navio sua Tia Rosa Viaro (65), seu
primo Abramo Sarti (23) que entrou como o chefe de família, sua a prima Maria
(31) e o marido dela Natale Donega (32) com o filho Mario (4)4. Eram
ao todo, seis pessoas. Chegaram ao Brasil no dia 28/06/1888. Deixaram a Itália
no início do verão, chegaram aqui no porto de Santos no início do nosso
inverno.
De Santos, seguiram de trem até a Pousada dos Imigrantes
em São Paulo onde pernoitaram e depois, novamente de trem, foram para a fazenda
Dumont na região de Ribeirão Preto, seu destino final. Em 05/10/1889, ou seja,
um ano e quatro meses depois, Giacomo Sarti se casou com Amábile Feltrin. Ele
com 25 anos, ela com 17. Tiveram vários filhos, entre eles, Ângelo Sarti, meu
avô.
Felice Fetrin
Felice di Giovanni Feltrin e Luigia Gabrieli nasceram na província de
Rovigo, Itália, ele no ano de 1846 e ela em 1851. Casaram-se provavelmente em
1870 ou 1871, pois em 1872 nasceu Amabile Feltrin, filha primogênita. Dois anos
depois, em 19/10/1874 nasce Augusto Feltrin em Ramodipalo, Rovigo e em
06/10/1876 nasce Eugenio Feltrin na cidade de Fratta Polesine, Rovigo. Não da
para precisar se Amabile Feltrin nasceu na cidade ou na província de Rovigo. Felice
Feltrin e Luigia Gabrieli eram agricultores e não tinham residência fixa. A família
mudava-se com frequência. Isso indica que não tinham terras, mas trabalhavam
provavelmente como meeiros nas propriedades de outras pessoas.
No final de agosto de 1888, Felice Feltrin tinha 42
anos e a esposa Luigia Gabrieli 37 quando partiram definitivamente, com sete
filhos, da região do Vêneto, Itália para o Brasil. Era pleno verão europeu. Acredito
que fizeram o percurso de Rovigo até Genova de trem e lá embarcaram no Vapor
Poitou. Quase um mês depois, no dia 21/09/1888, desembarcaram no porto de
Santos, São Paulo. Na lista de passageiros encontrada na Pousada do Imigrante
em São Paulo consta o nome e a idade de cada um dos familiares: Felice (di
Giovanni) Feltrin (42), a esposa Luigia Gabrieli (37) e os filhos Amabile
Feltrin (16), Agostino Feltrin (13), Eugenio Feltrin (12), Ângela Feltrin (09),
Concetta Feltrin (7), Maria Feltrin (4) e Antônia Feltrin (1). Uma nota neste
registro indica que o prenome do imigrante está abreviado. Na ‘lista di leva’
de Eugênio Feltrin, não consta ‘di Giovanni’ no nome de Felice Feltrin, apenas
na lista de desembarque. Nesta mesma lista, o nome de Augusto consta como
Agostino.
Era o final do inverno aqui, dois dias depois seria
primavera. Devia fazer um tempo bem agradável na chegada deles, lembrando que a
temperatura era mais fresca em 1888. É possível que ao subirem a Serra do mar,
dentro de um trem, sentiram o frescor da mata. Talvez até tiveram o trem
envolto pela famosa neblina que ainda hoje cobre Paranapiacaba, no topo da
serra no final do dia. Depois de pernoitarem na Pousada do Imigrante no Brás seguiram
de trem para a fazenda de Henrique Dumont, o pai do aviador Alberto Santos
Dumont. No documento de registro da Pousada do imigrante, indica como destino
definitivo; “Rib. Preto/Dr Henrique Drumont.” Um erro de grafia, já que o nome
era Dumont.
A família Feltrin desembarcou no Brasil três meses
depois do Giacomo Sarti. Foram trabalhar na mesma fazenda que ele. É provável
que Giacomo e Amabile se conheceram lá. Entretanto, como as duas famílias são
de Rovigo, pode ser também que as famílias já se conheciam na Itália, mas
vieram ao Brasil em navios e datas diferentes. Não tenho informações se Felice
e Luigia Feltrin tiveram outros filhos no Brasil.
Felice
‘Bon’ Tiozzo e Carlo ‘Bon’ Tiozzo
Felice Bon Tiozzo nasceu em 1825. Isto foi durante o Risorgimento, o movimento na história italiana que buscou unificar
o país entre 1815 e 1870. Em outras palavras, a Itália não era ainda um país
como hoje conhecemos. Casou-se com
Giovanna Boscolo, nascida em 1834, e tiveram um filho, Carlo “Bon” Tiozzo no dia
13/12/1871. Eram também do Vêneto. Nesta época moravam na cidade de Chioggia,
província de Veneza, Itália. Felice Tiozzo tinha 46 anos e Giovanna Boscolo
tinha 37 quando Carlo nasceu.
Em 1888, Felice Tiozzo então com 63 anos de idade partiu
para o Brasil com a mulher Giovanna Boscolo, ela com 54. Partiram da Itália
pelo porto de Genova e viajaram no navio France, muito provavelmente o mesmo navio
em que o Giacomo Sarti viajou seis meses antes.
Vieram com o casal seus dois filhos Carlo (17) e
Luiggi Tiozzo (14). Não sabemos se tinham mais filhos, mas chama atenção a
idade avançada do casal na época da imigração e o fato de viajarem com apenas
dois filhos bem jovens. Partiram da Itália na segunda metade de novembro,
portanto já fazia muito frio lá. Eles desembarcaram no porto de Santos, Brasil
no dia 17/12/1888, em pleno verão no Brasil. A lista de desembarque indica o
nome e a idade de cada um deles: Felice Tiozzo (63) casado, Giovanna Tiozzo
(54), Carlos Tiozzo (17), Luiggi (14). O destino final deles foi também a
fazenda de Henrique Dumont em Ribeirão Preto, SP. Henrique Dumont era
considerado na época o Rei do café, portanto é apropriado dizer que eram
colonos da fazenda assim como Giacomo Sarti e Felice Feltrin. É bem provável
também que todos se conheceram lá e ficaram muito próximos.
Três anos mais tarde, Carlo Tiozzo, casou-se aos 20
anos de idade com Maria Antônia Boscarato, entre 19 e 20 anos, em Ribeirão
Preto no dia 14/11/1891. A certidão de casamento diz que ele era lavrador e ambos
eram naturais de Veneza, Itália. Na certidão de registro civil, consta o nome
do pai de Antonia como Boscarata3 Francisco e Zalinea Euphemia. (Francesco
Boscarato e Euphemia Zalinea). Temos também o registro do casamento na Catedral
de São Sebastião de Ribeirão Preto. As testemunhas na igreja foram Ampirelo
Giacomo e Crivilari Santo e o casamento foi realizado pelo vigário Joaquim
Antonio de Siqueira. Baseado nessas informações é possível deduzir que Francesco Boscarato emigrou com a
família da Itália para o Brasil, mas nunca encontrei registro de passagem dele
pela hospedaria do Brás.
A família de Carlos Tiozzo juntou-se à família de
Giacomo Sarti e Amabile Feltrin para formar uma grande família aqui no Brasil.
Três filhos de Carlo Tiozzo casaram-se com três filhos de Giacomo, como veremos
mais à frente.
Estes emigrantes italianos tinham muitas coisas em
comum. Eles vieram da mesma região da Itália, o Vêneto, falavam o mesmo
dialeto, o vêneto e tinham costumes parecidos. Eram camponeses, analfabetos ou semianalfabetos,
acostumados a trabalhar pesado. Todos passaram por adversidades na terra
original e vieram com um sonho ou objetivo na bagagem. Eles partiram e chegaram
ao Brasil no mesmo ano, em 1888, ano em que foi assinada a Lei Áurea que
oficialmente dava liberdade aos negros cativos. Todos seguiram para a fazenda
Dumont, de Henrique Dumont em Ribeirão Preto para trabalhar nas plantações de
café. É verdade que havia muito em comum, mas eram também diferentes. Um pouco
de cada um deles está no sangue de seus descendentes e também nos costumes,
maneira de trabalhar, comer e falar. Então, quem eram eles realmente?
Como uma história leva a outra, ainda havia muitas perguntas
para serem respondidas como: Como era a vida deles na Itália, especialmente na
região do Vêneto, onde moravam? Por que emigraram da Itália e por que no mesmo
ano? Por que escolheram o Brasil, e não os Estados Unidos ou Argentina? Como
foi a viagem de navio até aqui? Como era viajar por quase um mês acomodados na
terceira classe de navios lotados com outros emigrantes, de regiões diversas
como Nápoles, Calábria e Gênova? Como foi a adaptação à nova vida, cultura e
costumes? O que levou seus filhos, netos e bisnetos a terem orgulho de serem
italianos sendo eles brasileiros? Como foi que os netos apreenderam tanto da
cultura caipira do interior de São Paulo, mesmo vivendo cercados de tantos
italianos e descendentes?
Curioso em descobrir as respostas a essas perguntas,
eu passei a ler e buscar informações a respeito da História da unificação
italiana, da grande migração, do momento histórico e político em que o Brasil
vivia neste período. Por que foram para Ribeirão Preto, o que os atraiu aquela
região? Quem eram os fazendeiros para quem trabalhavam? Como era a relação de
trabalho com outros imigrantes e com os brasileiros? O que dizer da rotina do
homem, da mulher e das crianças? O processo foi como entrar em um túnel do
tempo e visualizar a vida deles na Itália, na viagem de navio pelo oceano e a
vida nas fazendas de Ribeirão Preto. E são essas informações que quero
partilhar com meus leitores a partir daqui. Vou começar falando sobre a região
de onde vieram, o Vêneto.
Notas e referências:
- Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa,
- BATTISTEL, Arlindo Itacir. Polenta e Liberdade:Saga de imigrantes italianos. Porto Alegre: Evangraf, 2016. Pagina 188 - Tineto adoece. p 188.
- Boscarato é a
forma escrita mais comum do nome na Itália, e não Boscarata, Buscaratta ou Boscaratto e Buscaratto, como
estão em outros documentos feitos no Brasil.
Estou tão emocionada com esse artigo....conhecer um pouco mais sobre meus antepassados. Sou bisneta de Amabile Feltrin e Giácomo Sarti. Você pode me dizer quem é ??? Afinal, temos um parentesco. Meu nome é Matilde Rodrigues, neta de João Tiozo e Antônia Sarti. Meu contato é 94948-2770
ResponderExcluirTbem sou bisneta deles...filha de Idalina Sarti e Enrico Sarti
ExcluirQue trabalho mais fantástico Luiz. Parabéns!!!
ResponderExcluirJá apreciava a quantidade de informação que você gerou no Family Tree, mas todo esse seu registro de família merece muitos aplausos. Feliz por poder saber um pouco mais sobre meus tataravôs. Obrigada por compartilhar.