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32 - Caipiras, graças a Deus

O título é uma paródia do livro Anarquistas, graças a Deus de Zélia Gatai. Zélia era filha de italianos, seu pai de Florença, sua mãe do Vêneto.  Seu livro publicado em 1979 é uma crônica onde ela mistura fatos e imaginação. É o registro e o testemunho de suas observações da vida familiar. Nos parágrafos à frente, eu me dedico a descrever as minhas memórias como também de outras pessoas da família, e dessa forma, reconstruir a rica experiência que tivemos nos nossos passeios e principalmente da vida da minha família que permaneceu no interior paulista. Ouvir as histórias de outras pessoas nos dá pontos de vistas diferentes dos mesmos objetos e acontecimentos. Elas aumentam, explicam e enriquem os fatos e minhas observações. Convido o leitor a fazer esta viagem comigo! 

Colina - 2019

Em dezembro de 2019, eu fiz uma viagem com a minha mãe até Colina. São cinquenta anos que nos separam daquela viagem feita em 1968. Meu objetivo era visitar meus tios e primos, conversar, recordar e reviver aquela época na fazenda Palmital e fazenda Retiro. A viagem aconteceu entre 25/12/2019 e 30/12/2019. Nesta viagem também visitei a cidade de Dumont, SP.

     A Zenaide, minha prima, filha mais velha do meu tio Antônio Sarti, que mora em Atibaia, também passava uma temporada em Colina. Foi ótimo revê-la e, sobretudo ouvir as histórias que ela tinha para contar. Por ser a neta mais velha de Ângelo Sarti, ela lembrava muitos detalhes daquela época pois ela passou a maior parte de sua infância e adolescência na fazenda Retiro e visitava meus avos na fazenda Palmital com maior frequência. Minha mãe, Maria Aurélio e a Idalina, minha prima, estavam por perto e acrescentavam ou corrigiam a narrativa com suas próprias memórias e versões dos acontecimentos. Durante as refeições e os passeios na praça, em frente à igreja de Colina, a ida ao cemitério, a Monte Azul ou Dumont, as lembranças viam, perguntas surgiam e as respostas acrescentavam detalhes ao que eu já sabia.  Outras coisas, aprendermos juntos. (Foto: Marcia, Zenaide, Idalina)

A Fazenda Retiro

Zenaide contou que quando ela nasceu, em 1954, todos moravam na Fazenda Retiro: nosso avô Ângelo, seu pai, meu tio Antonio e o meu pai, Reinaldo e sua família. Eles moravam na mesma colônia. A família do meu avô e o meu pai saíram da fazenda Retiro no final de 1961 e foram para a fazenda Jangada, em Barretos.

Em 1960, quando a Elza, minha irmã nasceu, todos eles ainda moravam na fazenda Retiro, mas minha mãe fez o parto no hospital de Bebedouro. Por que Bebedouro e não Colina? Eu queria saber. Minha mãe disse que era costume as mulheres da fazenda Retiro irem ter filhos no hospital de lá. A Zenaide explicou que o hospital era uma Santa Casa administrada pelas irmãs católicas (freiras). A Zenaide se lembra das irmãs na fazenda pedindo doações para o hospital. Como os fazendeiros faziam contribuições, as mulheres dos colonos eram aceitas gratuitamente quando faziam o parto. Minha mãe foi de taxi, por ocasião do nascimento da Elza, mas minha tia Clair pegava carona em caminhão. Ela teve quase todos os filhos lá. Isso explica por que no registro de nascimento da minha irmã e dos meus primos, diz que eles nasceram em Bebedouro, e não Colina.

Quando minha mãe se casou com meu pai, em 1959 ela foi morar na fazenda Retiro. Não era costume montar uma casa para o novo casal. Um dos motivos era que nem sempre havia casas vazias nas colônias, e outro era que fazia parte do costume entre os descendentes de italianos. Assim como era na Itália, muito antes da imigração, a nora vinha morar com o sogro e a sogra. O motivo era que, quanto mais pessoas na família, melhor seria para pegar serviço nas fazendas. Mas, minha mãe não ia ajudar no trabalho da roça. Segundo ela, ela nunca trabalhou na roça, nem quando solteira nem depois de casada. Ela ficava em casa ajudando minha avó com os trabalhos domésticos. Por ocasião do casamento, minha tia Zulmira, então com doze anos, deixou de ajudar minha avó e começou a ajudar na roça. A minha tia Nadir, a partir dos oito anos, ia levar o almoço na roça, e não voltava, ficava lá ajudando o meu avô e os irmãos dela, assim como a Zenaide que ficava ajudando seu pai, meu tio Antonio. Era outro costume entre os colonos.

Todos trabalhavam no café, mas a Zenaide lembrou que por volta de 1962 e 1964, enquanto ainda trabalhavam na fazenda retiro, o patrão mandou arrancar os pés de café e plantou laranja no lugar. Os pés arrancados eram colocados em fileiras e os colonos usavam para fazer lenha para o fogão da cozinha. Como a laranjeira demora a crescer, eles plantavam feijão ou milho nas fileiras entre os pés de laranja. Havia áreas da fazenda que foram reservadas apenas para plantação de feijão e milho. Meu tio era meeiro, por isso, tudo o que era plantado, depois de colhido, era dividido com o patrão. Para a Zenaide, a fazenda Retiro era uma das melhores fazendas para se trabalhar e morar na época. Havia uma horta onde plantavam couve, abobora e verduras.  A Idalina lembrou que havia fartura de frutas como bananas e mangas.

A partir dos oito anos de idade a Zenaide começou a ajudar na roça. Ela ia a escola de manhã e depois do almoço ia ajudar meu tio e minha tia a capinar. Meu tio chegou a fazer uma enxada menor para ela ajudar na capina. Ela era a filha mais velha, o filho que meu tio não teve. Isso é uma herança da cultura italiana. Esperava-se que o primogênito fosse ‘maschile’, homem. Quando vinha uma menina, era uma decepção! Minha tia Clair também ajudava na roça, mas às vezes se negava a fazer algumas coisas não gostava. A Zenaide, ao contrário da mãe, sempre dizia sim ao seu pai. A Esmeralda, a segunda filha não trabalhava na roça, ela ficava em casa e cuidada dos irmãos menores. Quando voltava da roça a Zenaide ainda tinham que debulhar milho para dar para as galinhas. Para os porcos davam espigas inteiras, mas tiravam a palha antes. Agora eu entendi por que quando nós íamos para Colina, passar férias escolares, eu quase não via a Zenaide!

Em época de colheita, os oito membros da família iam para a roça, mas somente meu tio, tia e Zenaide trabalhavam. Os pequenos ficavam debaixo de uma cabana para se proteger do sol, sob os cuidados da Esmeralda. A Idalina, muito pequena ainda, deitava-se em um pano no chão e ficava olhando para as nuvens no céu a imaginar animais.

Havia uma escola na fazenda Retiro que se resumia a apenas uma sala. Na sala de aula as turmas eram divididas em fileiras. Havia duas filas para o primeiro ano, uma fileira para o segundo e meia fileira de terceiro e meia de quarto. Os pais tiravam os filhos da escola para que eles ajudassem na lavoura, por isso muitos deles não terminavam a quarta série. Fiquei curioso em saber se elas conhecem alguém, da geração delas, que deram seguimento aos estudos.  Segundo a Idalina, uma amiga dela veio para Colina morar com um parente e estudou na cidade. Depois de terminar a escola secundária, trabalhou em um banco e acabou se casando com alguém remediado, que trabalhava para o governo. Pelo menos um dos filhos dessa amiga se formou médico. 

O meu tio Antonio e sua família continuaram a morar na fazenda Retiro, por volta de 1968 a fazenda Retiro foi dividida em partilha e a outra parte passou a se chamar fazenda Carro Queimado. A colônia ficava no Retiro, e na fazenda Carro queimado ficava a coloninha, do outro lado do açude.  Nessa época, eles mudaram da colônia para a coloninha. (Luiz, Toninho e Marcos - Fazenda Retiro / Carro Queimado, 1968)

Na coloninha, meu tio teve permissão para usar duas casas. Em uma ficava a cadeira de barbeiro dele, e servia como depósito. Meu tio Antonio, além de trabalhar na roça durante o dia, trabalhava também como barbeiro a noite e final de semana. Ele cortava até mesmo o cabelo do dono da fazenda, o Nenê Junqueira que doou uma cadeira de barbeiro para o meu tio para ele montar uma barbearia na fazenda Retiro. Alem de ajudar meu tio, facilitava a vida dos colonos que não precisavam ir até a cidade fazer isso. Meus tios e primos moravam na outra casa, germinada a esta onde funcionava a barbearia. Alguns anos depois, quando meu tio finalmente saiu da fazenda Carro Queimado, ele comprou uma casa na cidade e montou uma barbearia onde trabalhou muitos anos, dia e noite. Ele tornou-se muito conhecido como o barbeiro Tuím.

Lembraram-se que na casa onde funcionava a barbearia, meu tio usou um dos quartos para fazer um banheiro onde pendurou um balde com chuveiro embaixo. Mas para tomar banho, precisavam descer o balde com uma cordinha, colocar a água temperada, puxar a corda para levantar o balde, prender a corda e depois tomar banho. O meu tio vez um cercadinho de tijolos e cimento para a água não escorrer para o resto do cômodo. Na outra casa, geminada, eles moravam. Havia uma cozinha, sala e dois quartos. O casal dormia em um quarto, e os filhos todos dormiam juntos em outro quarto.

Zenaide contou que para ter o primeiro radio, que ela queria muito para ouvir as músicas de Roberto Carlos, meu tio Antonio fez ume escambo. Trocou um radio de segunda mão por oito sacos de arroz. Meu tio Antonio era meticuloso e exigente. Segundo a Zenaide, era muito inteligente e gostava das coisas bem feita. Ele estudou apenas até o segundo ano na escola, mas era muito bom de contas. Ela o ajudava a somar as notas que pegavam na venda que ficava na fazenda Retiro e era administrada pelo Zapella. Eles não pagavam com dinheiro, pegavam as mercadorias e pegavam uma nota, o Zapella anotava o valor na caderneta dele. Acontece que na hora do acerto, as contas do meu tio nunca batiam com as contas do Zapella. Ele dizia que as ‘meninas’ iam lá pegar coisas e meu tio reclamava com ele: “Por que você não deu nota pra elas?” Era a palavra de um contra o outro. Zenaide não se lembra como eles resolviam isso.

Fazenda Jangada - Barretos

A Zenaide queria saber o significado da palavra colono. Encontrei no dicionário etológico que a origem da palavra vem do latim colonus, plural coloni, que significa agricultor. Na região do estado de São Paulo, refere-se ao trabalhador agrícola que trabalha por meação, contrato segundo o qual o lavrador fica com a metade da colheita, devendo entregar a outra metade ao proprietário da terra. Na região sul do Brasil, colono é o trabalhador dos núcleos coloniais estabelecidos pelo governo no século 19, visando a introdução de imigrantes, os quais recebiam um pequeno lote para cultivar, podendo trabalhar também nas fazendas ao redor. Ela disse que alguns eram chamados de camaradas, mas não sabemos a que se refere.

Minha mãe disse que a família do meu avô Ângelo Sarti e o meu pai sempre trabalharam com café, nunca com outras lavouras. Como meu avô Ângelo tinha muito filhos, ele tinha facilidade em encontrar trabalho em fazendas com vários pés de café. Quando meu pai se casou e se separou do meu avô, ele pegou 4.000 pés de café para trabalhar. Era mais do que as pessoas normalmente pegavam. A média era de 3.000 a 3.500 pés de café.

A Zenaide lembrou que na fazenda Jangada, quando eu nasci, meu pai era ‘retireiro’, nome dado a uma pessoa que trabalha cuidando de bois e vacas. Ele se levantava cedo, separava os bezerros das vacas, soltava o gado para pastar e a noite recolhia. Minha mãe adicionou que ele fora contratado para trabalhar no café, mas que no último minuto ofereceram este trabalho a ele, porque estavam sem retireiro na fazenda Jangada, era algo urgente. Como ele iria trabalhar na lavoura a troco de salário, aceitou. Por falar em animais, meus avós tinham três vacas. A Zenaide disse rindo: “Eles eram considerados ricos!” O nome delas eram fumaça e Andorinha. O nome da terceira, não me lembro. Com três vacas eles garantiam leite para as crianças o ano todo porque as vacas tinham bezerro em épocas diferente. (Foto: A vaca fumaça e Reinaldo Sarti na fazenda Palmital em 1968)

Foi por volta de 1962 que meu tio Augusto saiu da fazenda e foi morar em São Paulo. Mais um migrante na família. Começou a especulação: Quando foi que ele saiu do interior para São Paulo? Morava na fazenda Jangada? Em que ano foi? Por que veio pra São Paulo? Como foi a reação do vô e da vó? Tinha quantos anos? Foi morar com parentes, mas quem? Trabalhava onde?

Minha mãe disse que a família do Bépi (Giuseppi Sarti) foi a primeira a migrar para São Paulo. Vamos explicar quem são esses parentes nossos. O filho mais velho do meu bisavô Giacomo Sarti foi Enricco Sarti ou Henrique. Ele era, portanto o irmão mais velho do Ângelo Sarti, meu avô. O Henrique casou-se com Maria Bolognesi em 1913 e juntos tiveram cinco filhos que são: Primo Sarti (Nêne), Giuseppe Sarti (Bépi), Idalina, Josephina Sarti (Pina), Olivana Sarti (Eliana). Henrique faleceu em 1936 com 45 anos. Bépi, ou Giuseppe Sarti, era o tal primo do meu pai e do meu tio Augusto que se mudou com sua mulher Ana Montier para São Paulo, com ele foi também seu irmão Nêne e sua irmã Pina. Eu me lembro de ter ido com meu pai visitá-los quando moravam em São Caetano do Sul. A Pina fazia uma abobrinha refogada com linguiça frita, que era uma delícia! Mas, continuando a história, o tio Gusto ou Augusto, decidiu migrar para São Paulo também e os encontrou e foi morar com eles. 

Em São Paulo, meu tio Augusto passou a dividir um quarto com seu primo Nêne. Não havia telefones e o costume de manterem correspondência naquela época entre as famílias. Assim, meus avos não sabiam onde meu tio estava. Um dia, o Nêne veio para o interior visitar meus avós que moravam na fazenda Jangada. Minha avó, ao vê-lo, disse chorando que tinha um filho morando em São Paulo, mas não tinha notícias dele. Ela estava aflita! O Nêne contou que ele estava morando com eles. Aparentemente meu tio Augusto não teve muita dificuldade em se mudar nem em conseguir autorização do seu pai. Nessa época, meu tio Augusto já namorava a Célia Zapella, filha do administrador da venda na fazenda Retiro.

A fazenda Jangada ficava em Barretos, cidade onde nasci e fui registrado. Eu queria saber como é que minha mãe sabia a hora de ter o filho?

Com a palavra: Maria Aurélio Sarti

Ela disse que sentia dores uns três dias antes e teve todos os filhos em parto normal, sem fazer cesariana. Mas como minha mãe foi para o hospital? Quem a levou até Barretos? Foi o patrão, dono da fazenda que deu carona para minha mãe no caminhão dele até o hospital em Barretos.

O hospital tinha a parte particular e a enfermaria. Minha mãe ficou na enfermaria, mas eram quartos bem arrumados, com quatro camas em cada quarto. Todas as camas estavam ocupadas, mas eu era o único menino, as outras três mulheres tiveram meninas, por isso nem preciso colocar pulseira de identificação em mim. Poucos dias depois, o patrão tinha ido para a cidade e resolveu passar no hospital para saber quando minha mãe teria alta médica. A enfermeira disse a ela podia ir embora se quisesse, e ela foi. Meu pai ficou surpreso quando viu minha mãe voltando no caminhão. Meus pais se davam muito bem com os donos da fazenda. Eles vinham a tardezinha até a colônia, colocavam uma cadeira do lado de fora da casa e ficavam conversando. A esposa do patrão ajudava minha mãe a cuidar da Elza, a primeira filha e eu também.

Da fazenda jangada, mudaram para a fazenda Caçula, Colina. Em setembro de 1962 a família de Marcelo Sarti (63), irmão do meu avô e Ângelo Sarti (58), meu avô, mudam-se da fazenda Jangada, Barretos para Fazenda Caçula, Colina, SP. Em novembro de 1963 meu pai migrou para São Paulo com sua família. Mas essa é a história da postagem número 3.

O pão da vó

Eu gostava muito de comer o pão que a minha avó fazia. Era muito diferente do pão francês que comprávamos nas padarias em São Paulo. Nem melhor, nem pior, diferente.  Segundo a Zenaide, o pão era feito com banha de porco, farinha, fermento e sal. Ela acrescentou: “O que é a falta de informação! Tinha leite e ovos disponíveis, mas ninguém usava para deixar o pão mais nutritivo!  - Então era isso? O pão que eu via minha avó amassando, sovando, colocando sobre folhas de bananeira pra crescer e depois levado ao forno feito de barro, pré aquecido com lenha, para ser assado, e que eu me deliciava comendo com margarina e café coado na hora, era um simples pão feito com banha de porco, farinha, sal e fermento! 

Voltamos a falar sobre o pão na casa da tia Zilda, casada com meu tio Paulo. Ela explicou como minha avó fazia o pão com requintes de detalhes. Derretiam a gordura do porco para usar para fazer o pão. Usava um quilo de farinha para quatro pães. Só sabe o gosto quem já comeu! Em sua receita ela usava apenas farinha, açúcar, sal, e fermento de litro. Não usava leite nem ovos. Antes de tudo, era preciso fazer a reforma do fermento. O fermento é feito a partir da mistura de água, farinha, açúcar e sal. Costumava-se dividi-lo em duas partes: a primeira parte era usada para fazer o pão, a segunda parte era guardada como “muda” para ser reformada na próxima vez que o fermento fosse usado. Colocavam o líquido dentro de uma garrafa bem fechada com um pedaço de espiga de milho e guardava em um canto da cozinha para descansar. Depois de alguns dias, a pressão causava uma explosão e a rolha estourava. Era hora de fazer o pão. Não havia dia nem noite. Às vezes tinham que amassar o pão à noite, para não perder o fermento.

Ela voltou a dizer que na receita de pão da minha avó Dirce (Virginia) não ia ovos nem leite, apenas a banha, farinha, açúcar, sal e o fermento. Faziam a massa, passavam no cilindro e depois amassavam o pão. Quando não tinham cilindro, tinham que sovar a massa até ela ficar macia, o que era exaustivo. Deixavam os pães descansar cobertos com um pano branco e esperavam até ele dobrar de tamanho. Colocavam no forno e logo sentiam o cheiro do pão vindo do forno. O forno da minha avó ficava do lado de fora de casa, sob um coberto. A minha avó guardava os pães dentro de um saco, amarrava e colocava no baú. A Zenaide e Esmeralda se escondiam dentro do baú quando iam passear na casa da nossa vó.

Quando visitei minha tia Zulmira em Monte Azul, perguntei pra ela. Queria confirmação. Ela disse que minha avó colocava leite e ovos na receita. Lembramos dos pãezinhos pequeninos que ela fazia para os netos e assava junto aos pães grandes. A Cristina, minha prima, filha da tia Zulmira, lembrou que depois que ela assava os pães, ela os colocava em um saco, amarrava a boca e colocava dentro de um baú, onde era armazenado. O baú tinha três separações e em cada uma delas, minha avó guardava algo diferente. A tampa do baú ficava o tempo todo fechada. Quando minha avó levantava a tampa para pegar o pão, saia de lá aquele cheiro gostoso do pão! Pode ser que minha avó tinha receitas diferentes para o pão. Mas pelo que me lembro, o pão dela era um pouco duro, é bem provável que o que eu comia, não levava nem ovos nem leite!

Fazenda Palmital

Minha mãe lembrou que quando eu tinha cinco anos de idade, portanto em 1967, meu pai veio visitar seu pai, Ângelo Sarti na fazenda Palmital. Ele trouxe apenas eu e a Rita, que na época tinha três anos de idade. Minha mãe tinha a Silvia muito pequena, por isso ela ficou em São Caetano com a Elza e a Silvia, ainda bebê. Nesta viagem, meu pai foi comigo até o cafezal levar comida para meu avô e seus irmãos que estavam trabalhando. Em um segundo de descuido, eu desapareci. Quando se deram conta, começaram a me procurar naquelas fileiras intermináveis de cafeeiros, sem sucesso. Gritavam meu nome e procuravam por lados diferentes. Segundo minha mãe, a preocupação dele era que, de um lado havia um matagal, do outro lado do cafezal, um pasto com bois e vacas. Se no matagal eu pudesse ser vítima de uma cobra, no pasto eu seria confundido com um cachorro e poderia ser destroçado sob os pés de um toro raivoso. De repente, meu pai viu um pequeno vulto cruzando uma fileira de café. Gritou o meu nome. Eu voltei, o vi distante e corri em sua direção. O alívio que sentiu por não ter que levar a notícia de uma tragédia na volta para casa, não era o mesmo que minha mãe sentia em casa. Ela sonhava todas as noites que meu pai poderia perder minha irmã, a Rita ou que algo aconteceria com um de nós. Eu consigo lembrar muito vagamente dos cafeeiros, como se fossem pinheiros gigantes, mas não do ocorrido. Confio na versão do relato deles. Não sei o que me levou a fugir do pequeno círculo que provavelmente pararam o trabalho para almoçar e que causou distúrbio aquele momento tranquilo. Mas não fora a primeira vez. Minha mãe contou que ainda na fazenda Jangada, pouco antes de nos mudarmos para São Paulo, eu com dois anos de idade, também desapareci. Passei por baixo da cerca de arame farpado e corri para o pasto que ficava em frente à colônia, em direção as vacas. Os animais pararam em fileira para me observar. Fui salvo pelos gritos desesperados de minha mãe que implorava para eu voltar. Eu obedeci e voltei, completamente ignorante do perigo que corria. (Foto acima: Elza e Luiz - fazenda Palmital em 1969)

O amigo do meu pai

Nessa viagem pra Colina, eu fui visitar o cemitério da cidade, onde estão as cinzas do meu pai. Depois do cemitério e de nos separarmos de minha mãe, eu e o Mateus Sarti passamos na oficina mecânica do meu primo Toninho, filho do meu tio Antonio. Quando chegamos lá, ele estava trabalhando, mas havia dois amigos dele sentados na calçada. Ele me apresentou a um deles. Seu nome era Laércio Zanon, primo do falecido marido da Zenaide. Ele é da mesma idade do meu tio Paulo e da Zenaide, ou seja, tem 65 anos de idade agora. Assim que o Toninho explicou que eu era filho do Reinaldo Sarti, ele disse que a família dele era muito amiga da família do meu avô Ângelo na época em que moravam na fazenda Jangada. Isso foi quando eu nasci, em 1962. 

O Laércio me contou algumas coisas interessantes sobre os meus avós. Ele ia para a escola de manhã, sua mãe deixava a comida pronta em caldeirão para ele e seus irmãos na primeira casa da colônia, que era onde minha avó morava. Quando eles voltavam da escola, passava lá, almoçavam e depois iam para a roça ajudar a família. A família Zanon conhecia os Sarti desde o Retiro, depois seguiram eles para a fazenda Jangada e depois para a fazenda Caçula e depois para o Palmital. Eu quis saber o que faziam eles mudarem tanto. Sua resposta foi: “Frescura!” – não tinha explicações complexas. Ele disse que se o café era bom, eles ficavam, se fosse ruim, eles iam embora para outro lugar. Não estavam presos a nada e a ninguém. A família Zanon veio da Itália, mas ele não lembrava de onde, o que já era esperado. Foram para Araras e depois vieram para Colina.

No próximo post vou falar da visita a minha tia Zulmira em Monte Azul, filha da Virginia Tiozzo e as minhas tias Zica, Zilda e Isabel, todas noras de Virginia. Foram conversas interessantes visto que temos versões diferentes da mesma pessoa. E por fim uma conversa com os tios Nego e Paulo, o filho caçula dos meus avós Ângelo e Virginia.

GATAI, Zélia. Anarquistas Graças a Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.


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