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11 - A Língua italiana

Em 2020 cerca de 63 milhões de pessoas falam italiano no mundo. Mas era essa a língua utilizada pelos imigrantes do Vêneto no século XIX em casa com seus familiares, no campo com os outros camponeses, nas feiras na cidade ao fazerem compras, na igreja quando assistiam a missa? E o que dizer nos navios e vapores, durante a viagem da península italiana até o Brasil em 1888 quando emigraram? A língua italiana merece um capítulo à parte. 

A língua italiana, aquela língua oficial falada na Itália, pertence a família das línguas neolatinas como o Francês, Espanhol, Português, Romeno, Catalão, Galego e Provençal. Essas línguas derivam do latim ‘vulgar’, ou seja, do latim falado pelo povo comum, e não do latim clássico, utilizado pela administração romana. O latim ‘vulgar’, de inicio, era usado por um povo de cultura rústica, que vivia no Lácio, no centro da Península Itálica. As fronteiras do Lácio começaram a se expandir com a guerra contra os samnitas iniciada em 326 a.C. Este povo de cultura rústica, tornou-se o Império Romano e levou a sua língua e cultura a uma vasta área da Europa, Ásia e África em torno do  Mediterrâneo. Deram início a outras formas de línguas e culturas latinas. Com o tempo, devido ao êxito político do povo Romano, que desta língua se servia, ela veio a desempenhar um papel importante na história da civilização ocidental.

Com a vitória dos soldados romanos e com o espírito de organização de seus governantes, o império foi expandido e consolidado. Ao mesmo tempo em que estendiam os seus domínios, os romanos levavam para as regiões conquistadas os seus hábitos de vida, as suas instituições, os padrões de sua cultura, mas também absorviam alguns dos hábitos e costumes dos povos conquistados. Havia assim um grande intercambio cultural. Enquanto isso, sob influencia grega, o latim escrito foi sendo progressivamente apurado até atingir no século I a.C. a alta perfeição da prosa de Cícero e César, ou da poesia de Virgílio e Horácio. Acentuou-se a separação entre a língua literária, praticada por uma pequena elite, e o latim corrente, a língua usada no dia a dia pelos mais variados grupos sociais da Itália e das províncias, mais inovador e dinâmico. Foi este latim ‘vulgar’ que os soldados, colonos e funcionários romanos levaram para as regiões conquistadas. Com o tempo, sob a influência de vários fatores, diversificou-se nas chamadas línguas românicas, sendo o Italiano uma delas. Entretanto, outros fatores contribuíram para a alteração do latim vulgar em outras línguas e dialetos. Em 330 d.C. Constantino, que se tornara defensor do Cristianismo, transferiu a sede do Império Romano para Bizâncio, a nova Constantinopla. Em 395, com a morte de Teodósio, o vasto domínio foi dividido entre Ocidente e Oriente. O Império oriental conservou-se até 1453, mas o do ocidente sofreu sucessivas invasões de outros povos. A península itálica foi conquistada por tribos germânicas como os Ostrogodos e depois os Lombardos e no século VIII vieram os Francos. A língua sofreu a contaminação da língua desses povos invasores.

A idade Média começou com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d.C.. A partir de então, a península italiana passa a ser dividida em pequenos reinos, ducados, repúblicas e principados distintos e cidades independentes constantemente em guerra entre si disputando territórios e poder. Algumas regiões foram dominadas por outras potencias europeias e alguns territórios pertenciam a Franças, Espanha ou a Igreja. Em cada uma dessas regiões ao surgiram língua com sotaque e expressões idiomáticas. Os dialetos são muitas outras línguas, na quase totalidade também continuação do latim, com influências variadas e diferentes, dependendo das regiões e de seus eventos históricos, que foram transmitidos por séculos.  No século IX a língua italiana assumia fisionomia própria. Embora o latim clássico ainda fosse um idioma internacional, usado em documentos oficiais como escrituras e discursos oficiais, começaram a surgir na península Italiana, os primeiro documentos e literários escritos na língua falada pelo povo como ‘Il Cantico delle Creature’ (O Cantico di Frate Sole) de São Francisco de Assis do século XII e um documento oficial autenticado de Placito Capuano de 960 d.C. que contém traços do italiano vernacular. 

O primeiro grande trabalho de padronização desse italiano vulgar, encontra-se em um trabalho de Dante Alighieri chamado De Vulgari Eloquentia, de 1300.  Dante, nesse período, não quer usar o latim como idioma de suas obras, mas sai às ruas a procura da verdadeira língua florentina, falada pelos habitantes da cidade de Firenze, onde ele habitava. Ele praticamente cria uma nova língua, uma linguá ‘perfeita’ baseada no que ele ouvia nas ruas. Depois dele, dois importantes poetas e escritores, Boccaccio e Petrarca fizeram o mesmo. Por causa deles, o florentino começa a se tornar um modelo de referência para toda a Itália. 

Em 1500, alguns intelectuais italianos não admitiam que o latim ainda fosse a língua utilizada oficialmente e por isso decidiram que o italiano de Dante seria, a partir desse momento, a língua oficial da Itália. A Itália tinha a partir de então um modelo único para a língua escrita, mas a língua falada ainda é regional por muitos séculos. Muitas pessoas, principalmente os intelectuais, escrevem de uma maneira mas falam em casa de outra. E as pessoas humildes também se comunicavam usando o italiano vulgar. Em 1600, Galileu Galilei, físico matemático, astrônomo e filósofo florentino (de Florença), decide escrever no vernáculo para que as pessoas humildes tivessem acesso a informações científicas. Ele expande, amplia, e torna estas informações disponíveis a todos. 

Em 1827 é publicado o livro I promessi sposi (Os Noivos), um romance do escritos Alessandro Manzoni. Ele é considerado o romance mais famoso e lido na língua italiana. Embora Mazoni fosse de Milão e falasse milanês, ele escreveu usando o dialeto florentino. Manzoni foi para Região da Toscana buscar uma nova língua e conhecimento e empregou o dialeto falado de Florença na última edição de Os Noivos, revisada em 1840. A obra tem um duplo valor, tanto na literatura, como na linguística pois, com esse livro, Manzoni fez a aproximação entre o italiano escrito e a língua falada. Os noivos foi o primeiro grande passo dos anos 1800 para unificar um povo que estava unido no nível institucional, politicamente, mas ainda não culturalmente. Assim como Manzoni, os italianos continuavam a falar os dialetos em casa, nas diversas regiões onde habitavam. Ainda hoje fala-se o napolitano, siciliano, vêneto, lombardo e piemontês nas suas respectivas regiões. Mas na escola as crianças são alfabetizadas e educadas no chamado Italiano Standard (Italiano padrão).

Até 1861, por ocasião da criação da unificação da Itália, apenas 2,5% da população italiana se comunicava em italiano, apenas 10% entendiam o idioma. Portanto, o italiano não era o idioma diário da maioria das pessoas. Além disso, 80% da população era analfabeta e somente 0,89% tinham terminado a escola elementar. Em 1961, cem anos depois, menos de 9% da população era analfabeta. Em 2020, apenas 2%, mas com 28% de analfabetos funcionais. Segundo Tullio de Mauro, linguista italiano, o que contribuiu para que o italiano standard se tornasse o idioma falado na península, desde a unificação, além da escola, outros fatores foram a imprensa, a imigração interna, burocracia, exército com o serviço militar obrigatório, e a guerra que obrigava os soldados provenientes de diversas partes do território a se comunicar e se fazer entender. Depois com o radio e a televisão a língua italiana foi totalmente disseminada. Hoje em dia o italiano padrão é utilizado na comunicação por mais de 60 milhões de pessoas em todo o mundo. 

Durante o domínio Austríaco (1814-1866), o italiano era a língua oficial do reino Lombardo-Vêneto usado no ensino nas escolas e em todas as correspondências oficiais do reino. O italiano não era obrigatório nas comunicações entre o reino e o Império Austríaco, que ocorreriam em alemão, mas se um austríaco desejasse ocupar alguma posição no reino, ele teria que aprender a falar italiano. O general austríaco Karl Schönhals 1 em suas "Memórias da guerra da Itália dos anos 1848-1849", diz que o governo austríaco desconfiava da alta aristocracia italiana. Quanto à questão da língua, ele diz que o italiano era idioma usado no ensino, nos escritórios e era a língua do gabinete do vice-rei ao comissário distrital, do presidente do Senado Supremo de Justiça ao pretoriano. O funcionário alemão que queria seguir sua carreira na Itália tinha que aprender primeiro o idioma daquele país. Entretanto, não foi imposta uma condição igual ao empregado italiano, ou seja, não precisavam falar alemão. Fora exceções, todos os trabalhos governamentais e judiciais foram ocupados por italianos, poucos dos quais tinham conhecimento do idioma alemão. Por isso era necessário intérpretes juramentados.

O italiano, essa língua oficial, era usada apenas pelas classes mais ricas, a classe operária e principalmente os camponeses falavam os dialetos, na Lambardia o milanês, no Vêneto falavam o dialeto vêneto. O povo do Vêneto vangloria-se de ter uma literatura própria e a língua veneta foi a utilizada em produções literárias, em particular por Carlo Goldoni, 2 dramaturgo veneziano para escrever suas comedias poéticas. Era também a língua oficial de Veneza quando foi uma República e é ainda falada na região do Vêneto mesmo por classes educadas e cultas. A língua vêneta foi difundida no Vêneto e em muitas províncias foi falada com a mistura de termos lombardos, em particular na província de Pádua, que sentia muita influência da língua lombarda.

Levando tudo isso em consideração, o que dizer da língua usada pelas famílias Feltrin, Sarti e Tiozzo para se comunicarem? A língua, ou dialeto que usavam para se comunicar no dia a dia era sem sombra de dúvidas o vêneto e não o italiano que hoje se estuda nas escolas de idiomas ou ouvimos nos podcasts, vídeos, series de TV e lemos nos livros modernos. Quais são as implicações disso? Como se comunicavam durante a viagem de mais de 20 dias dentro dos navios em 1888 com italianos de outras províncias? Quando chegaram ao Brasil, como se comunicavam com os brasileiros e outros estrangeiros que trabalhavam nas fazendas? E quando iam aos cartórios registrar casamentos e nascimentos dos filhos e também nas igrejas ao fazerem os registros de casamento e batizado? E o que dizer dos seus filhos nascidos no Brasil, a que língua foram expostos primeiro, ao dialeto vêneto ou ao portugues? Qual foi o resultado disso? 

Estas respostas serão dadas ao longo das próximas postagens.  

Referência:

  1. Karl Ritter von Schönhals (1788-1857) foi um general austríaco. Em 1821, ingressou na expedição de Nápoles, em 1830 atuou como ajudante geral do general Frimont em Milão e como ajudante geral de 1832 de Radetzky. Em 1848, ele prestou importantes serviços ao exército austríaco. Em 1849, o Governo Central Provisório da Confederação Alemã em Frankfurt am Main foi dissolvido e substituído por plenipotenciários (agentes diplomaticos inverstidos de plenos poderes), da Áustria e da Prússia. Schönhals e Kübau representaram o Império Austríaco até a Comissão ser dissolvida e o parlamento restaurado. A partir de 1851, ele renunciou devido a seus ferimentos de guerra, e dedicou-se a escrever biografias e história militar.
  2. Carlo Goldoni (1707-1793) foi um dramaturgo veneziano. É considerado um dos maiores autores europeus de teatro e um dos escritores italianos mais conhecidos fora da Itália. Provavelmente, suas obras, junto com as de Pirandello, constituem o principal veículo de difusão da arte dramatúrgica italiana através do mundo.

Outras Fontes:

  1. CUNHA, Celso e LINDLEY Cintra. Do latim ao português atual pp 9-13 - Nova Gramática do português contemporâneo – 5 ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008.
  2. Le origini della lingua italiana (dal medioevo al 1600)
  3. Speak italiano Pensieri & Parole – Le parole di Dante 
  4. Lingua Italiana: L’italiano NON Deriva dal Latino! - 8 Cose Interessanti sulla Lingua Italiana che (forse) non Sai

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