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15 - A vida no século XIX

Como era viver no Vêneto no século XIX, entre 1825, quando Felice “Bon” Tiozzo provavelmente nasceu, em 1888? Estudei a história do povo vêneto e a geografia da região, busquei entender o momento político e social que serviu de cenário para a grande emigração, mas ainda restava o interesse em saber sobre a rotina e a vida dos camponeses italianos do Vêneto em torno de 1888. Assim saberia quanto desses costumes do dia a dia eles trouxeram e mantiveram ao chegar ao Brasil. Quanto das coisas que membros da minha família, incluindo eu, ainda faz, ainda diz, e são resquícios dessa cultura? Como não tenho relatos diretos da minha família em forma escrita ou mesmo oral, para matar a curiosidade fiz uma viagem no tempo mergulhando nas informações deixadas por outros escritores e pesquisadores. Além de livros e textos, encontrei rico material em alguns filmes que considero verdadeiras obras primas: Novecento (1900) de Bernardo Bertolucci (1976) e L'albero degli zoccoli (A Arvore dos Tamancos) de Ermanno Olmi (1978). Para ajudar a ilustrar os meus textos, usarei fotografias destes dois filmes.

Trabalho

Na segunda metade do século XIX a Itália era ainda predominantemente agrária, pois o processo tardio da unificação do território itálico resultou no atraso do desenvolvimento industrial. O regime de propriedade de terra era ainda fundamentado no feudalismo e no semifeudalismo. Para evitar dividir a propriedade entre os herdeiros, o dono das terras, ao morrer, deixava em testamento que apenas um filho herdaria as terras e a vila. Os outros filhos recebiam uma anuidade vitalícia (valor anual fixo) e os bastardos, geralmente nada. O filme 1900 (Novecento - 1976),1 de Bernardo Bertolucci, mostra um panorama dessa época. Outros proprietários agiam de forma diferente e dividiam a propriedade em partes iguais aos filhos herdeiros. Com o tempo, muitos herdeiros se endividavam e não conseguiam pagar os pesados impostos. Com isso, perdiam as terras para os credores e tudo o que fazia parte dela ou então vendiam sua parte para outros membros da família e se viam obrigados a buscar trabalho em outras propriedades se juntando a milhares de outros camponeses.   Assim formou-se uma grande massa de trabalhadores rurais de baixa renda e uma pequena elite que concentrava a posse de terras e propriedades herdadas ou anexadas. Os filhos desses camponeses já nasciam sem direito a herança e quase nenhuma esperança de um dia ser patrão, ou dono de um pedaço de terra. 

Contadino é a palavra italiana para camponês. Refere-se a alguém empregado em um estabelecimento agrícola e cultiva frutas, cereais e verduras, que varia conforme o clima e o solo e pode também trabalhar cuidando de animais no pasto ou estábulos. Os camponeses se sentiram conectados a terra e a natureza, da mesma forma como um filho é conectado a mãe. O contadino podia ser um pequeno proprietário, inquilino, arrendatário, ou funcionário de uma cooperativa agrícola. Algumas famílias de camponeses eram residentes fixos nas fazendas, outras famílias eram compostas de trabalhadores sazonais. A grande maioria da população morava e trabalhava no campo. As poucas pessoas que moravam na cidade, eram geralmente comerciantes ou funcionários públicos. 

Os proprietários de terras e os camponeses moravam nas fazendas. Lá ficavam a casa do patrão, as casas dos camponeses, as estribarias dos animais e os galpões onde era guardado o material de trabalho e se armazenava o feno, a colheita, forragens, cereais, produtos químicos, produtos perecíveis ou até minerais. O dono da terra fornecia o terreno, a casa e, às vezes, um pequeno lote para o camponês cultivar milho, feijão, batatas e hortaliça para si e sua família e também criar animais como vacas, cabras e ovelhas para o leite, e porcos, que no inverno eram mortos para obter salame e costelas. O patrão fornecia também equipamento agrícola e animais como jumentos e cavalos para ajudar no trabalho e, ocasionalmente, adubo, inseticidas e adiantamentos em dinheiro. Ocupava-se de todo o trabalho e repartia o resultado da produção com o proprietário. Os trabalhadores ocupavam as terras em sistemas de parceria da produção como meeiros, uma das formas de parceria, e tinha  que viver com o que recebiam da venda de parte do que produziam nas terras do Senhorio. A porcentagem poderia chegar a até cinquenta por cento do total estabelecido. Metade do produto ficava com o patrão e a outra metade era dividido e distribuído entre as dezenas de famílias trabalhadoras. Alguns proprietários retinham dois terços do que era produzido e todos os animais nascidos na fazenda em troca da cessão das terras e dos utensílios de trabalho. 

Naquela época, os camponeses não tinham segurança no trabalho nem informações. Não estavam ligados a sindicatos, a grande maioria era analfabeta e os que sabiam ler não podiam comprar jornais. Eram, portanto forçados a seguir as ordens do proprietário da fazenda, com quem compartilhavam o lucro na hora da colheita. As fazendas mais próximas aos grandes centros urbanos produziam em grande escala para as indústrias têxtil, alimentícia e de laticínios que surgiam nas cidades, mas as fazendas da Polésine eram mais isoladas e produziam em pequena escala, geralmente arroz que era vendido imediatamente após a colheita para evitar doenças e que se perdesse.

O verão e primavera eram meses de muito trabalho. Era preciso produzir em dobro, uma parte para o sustento e outra para guardar para o outono e inverno. A rotina de trabalho dependia do tempo e clima e do tipo de produção na propriedade em que trabalhavam e incluíam: aração, semeadura, capinar, fertilização, enxertia, poda, tratamento com fungicidas para proteção contra doenças e insetos e colheita. Para realizar sua atividade, utilizava ferramentas como pá, enxada, tridente, foice, bomba manual ou mecânica de pesticidas, entre outros. Para tornar o solo fértil, removiam as pedras, nivelavam o solo para garantir a irrigação e garantir boa colheita. Em alguns casos o trabalho envolvia arrancar ervas daninha, extrair os pés de feijão maduros e levar para o pátio para ser debulhado cujo processo envolvia surrar as plantas com paus. Os homens também cortavam feno no campo ou prado quando o tempo estava bom e seco. O feno é uma mistura de plantas ceifadas e secas, geralmente capim, que é desidratada para ser armazenada e usada como forragem para o gado durante o inverno, quando não há pasto. Os camponeses faziam este trabalho manualmente utilizando ferramentas como o alfanje para cortar a grama e o garfo para coletar a grama. Cortavam o capim após o orvalho secar, depois de ceifar faziam a viragem, várias vezes ao dia para secar, e se ao final do dia o material não estivesse seco, faziam o enleiramento, que consiste em amarrar a forragem e formar fardos para evitar que fique úmida com a chuva ou orvalho noturno. Depois de cortada, a forragem tinha que ser curada rapidamente para não tomar chuva, senão se perdia. Finalmente enfardavam ou levavam para o celeiro onde era armazenado.  No século XIX, a grande parte do trabalho era feita manualmente ou com ajuda de animais. O cavalo e o burro eram usados ​​para transportar o material do campo: grama, feno, galhos de amoreira e madeira para a lareira para ser usada no fogão ou para aquecer a casa.

O trabalho começava antes do nascer do sol. Depois de muito trabalho, sentindo-se exaustos, às vezes descansavam sob um "murón", uma amoreira e adormeciam, sentindo-se culpados depois por terem perdido tempo. Voltavam para casa ao por do sol. O chefe da família e a dona da casa vão ao estábulo, alimentam as vacas e depois as ordenham garantindo o leite que era usado na polenta do jantar e no café da manhã do dia seguinte. O trabalho era árduo com carga horária exaustiva que ia muito além das oito horas diárias. Em época de colheita todos os membros da família trabalhavam, inclusive as crianças a partir dos sete anos de idade, o que as impediam de frequentar a escola. As meninas ajudavam a mãe nas tarefas domésticas e cuidavam dos irmãos menores e os meninos trabalhavam na criação de bichos de seda, limpavam as estribarias e recolhiam ramos secos e esterco de animais para estocar e queimar no inverno. Também guardavam abóboras no porão para serem consumidas no inverno. Eram as crianças também que iam buscar a água no poço ou fonte para encher os potes da cozinha. A rotina de trabalho era de seis dias por semana com descanso no domingo, mas mesmo no domingo, o contadino tinha que prender a vaca no curral ou socorrer um animal em perigo.  

O costume era que a mulher cuidasse da casa e dos filhos pequenos, mas também produzia alguma coisa para ajudar na renda familiar. Durante a colheita as mulheres ajudavam no campo, mesmo grávidas ou com filhos pequenos.  Elas limpavam a casa, cozinhavam, lavavam a roupa, cuidavam dos animais domésticos, faziam manteiga usando batedeira manual e compotas de frutas para serem consumidas no inverno. Alimentavam as galinhas e recolhiam ovos. O excedente era vendido ao "pulireù", o comerciante de aves. A dona-de-casa, título usado para as mulheres casadas, não possuía dinheiro, portanto ao fazer compras nos armazéns, não pagava, o vendeiro anotava as despesas e o valor devido para ser acertado no futuro. As frutas e legumes, eram colhidas no pomar e na horta.

Um dia da semana era reservado para lavar a roupa. Colocavam a roupa suja em uma tina ou bacia e a cobriam com um pano branco sobre o qual colocavam cinzas e um pouco de soda cáustica. Depois derramavam água quente sobre elas. Deixavam tudo de molho por um longo tempo. Depois reviravam, esfregavam, batiam, enxaguavam e colocavam pra secar no varal. Além de cansativo, as cinzas e a soda cáustica arruinaram suas mãos. Outras mulheres lavavam as roupas em um riacho. As moças solteira, além de ajudar em casa também ordenhavam vacas em estábulos ou trabalhavam como empregadas nas casas de famílias abastadas. Elas também davam brilho às panelas de cobre, munida de um punhado de cinza e palhas de milho.

Entretanto, na segunda metade do século XIX, como a produtividade do campo era baixíssima, sobrava muito pouco para o sustento de toda a família. Quando havia estações particularmente chuvosas com inundações, era ainda pior. No verão havia chuva de granizo e em uma única tarde, perdia-se tudo: vinho, tomate, batata, cereais, a colheita toda. O patrão chamava os camponeses e tentava convencê-los de que os prejuízos seriam divididos também entre eles. Afinal de contas, “Todos tinham que fazer sacrifícios!” Entretanto, quando a colheita era boa, o salário não aumentava. 

Por esse motivo, estouravam greves entre os camponeses com apoio das associações agrárias. As vacas deixavam de ser ordenhadas por vários dias e o trigo apodrecia no campo. Os trabalhadores dispensados, não tinham assistência social, eram expulsos das fazendas e suas casas sem ter pra onde ir. Quando despedido o camponês e sua família tinha que ir embora da fazenda, deixar os animais que nasceram lá e os utensílios do patrão, e buscar trabalho em outra propriedade. Tudo o que tinham cabia em uma carroça. Alguns acabavam indo para a cidade ou procuravam trabalhos temporários para ganhar um salário miserável. Segundo Edmondo De Amicis, em seu livro Em Alto Mar, "os trabalhadores sazonais, mesmo com a ajuda da mulher e os filhos pequenos, não conseguiam ganhar quinhentas liras por ano. Os debulhadores de arroz do sul da Lombardia, ganhavam uma lira por dia, trabalhando sob sol escaldante, na água lodosa."

Os Sarti, Tiozzo e Feltrin, membros da minha família eram ‘contadini’. Não eram proprietários das terras. Aparentemente, os Feltrin eram agricultores sazonais e não tinham residência fixa, mudava-se com frequência. Já a família Sarti, talvez fossem moradores fixos e inquilinos em uma fazenda de Castelguglielmo. 

Moradia:

 O patrão e sua família viviam confortavelmente na sua vila. Como vimos anteriormente, muitos nobres venezianos construíram magníficas casa de campo que eram verdadeiros palácios rurais em Fratta próximo a Castelguglielmo. Eram decoradas com afrescos, estátuas e grandes jardins. Havia também propriedades menores de famílias endinheiradas, não sofisticadas, mas ainda grandes e confortáveis. Por outro lado, o camponês vivia com sua grande família em locais apertados geralmente úmidos e escuros, além de conviver com os animais da estribaria. Imagine uma casa onde podia viver até vinte e sete pessoas dividindo espaço com três vacas na estribaria anexa! Isso era muito comum naquela época. 

No norte e nordeste da Itália, a maioria das casas dos camponeses era feitas de pedra, herança do tempo romano e eram coberta de telhas arredondadas. As portas e janelas eram de madeira, mas não havia vidros e no inverno, o vento gelado entrava pelas frestas. No andar térreo ficava a cozinha, com uma porta que dava acesso à estrebaria. No segundo andar havia os quartos, e o celeiro onde guardavam o feno, milho ou sorgo e trigo para o consumo da família. Em alguns casos, no subsolo havia um porão que faziam dele a adega onde guardavam o queijo e o vinho.  

Geralmente havia um quarto para o casal e alguns filhos menores e outro para o resto da família. Em alguns casos, dormiam todos no mesmo cômodo. No quarto havia as camas, baús, armários para a roupa, e um lavatório e um jarro com água que eram usados de manhã para lavar o rosto. O banheiro era um cubículo construído na parte de fora da casa. Muitos preferiam fazer suas necessidades ao ar livre, atrás de um arbusto, ou no estábulo junto às vacas. Em algumas famílias, a cerimônia do banho acontecia aos sábados. Colocavam uma banheira ou bacia de água em um cômodo da casa ou no estábulo e os membros da família faziam fila para tomar banho. A água era trocada a cada dois ou três banhos.  Durante a semana, eles apenas lavavam o rosto, as mãos e os pés. Ao lado do fogão sempre ficava um caldeirão para aquecer a água, mas no verão, deixavam a água aquecer no sol, do lado de fora da casa. Nos meses de julho e agosto, a dona de casa colocava uma bacia cheia de água no centro do pátio ou no quintal para ser aquecida ao sol; à noite, depois de um dia de trabalho, o marido ao voltar do campo, lavava a sujeira do rosto e dos pés e para aliviar o cansaço.

Na cozinha, havia uma mesa, bancos ou cadeiras, um aparador para o pão e alimentos. Também havia potes de barro onde se guardava a água para beber e cozinhar. Em uma das paredes ficava a lareira que era usada como fogão sobre a qual se guardava os utensílios mais usados. Na parte de baixo da madeira, ficam penduradas as conchas, escumadeiras, garfos e colheres que eram usadas na preparação dos alimentos. Um pouco mais abaixo, havia um varão onde se penduravam as panelas pelas alças em ganchos. No chão, logo abaixo das panelas, faziam uma fogueira. Este era o fogão. Às vezes a pequena chaminé não dava conta e a casa se enchia de fumaça. Não havia sala de estar ou visitas, assim, a cozinha era o local onde a família passava a maior parte do tempo, ali jantavam, conversavam e rezavam o terço. Quando recebiam visitas, ficavam do lado de fora no verão, sob a sombra de uma árvore, no inverno se agrupavam nos estábulos junto aos animais. Na estribaria também podia haver um conjunto de tecelagem onde as moças e mulheres transformavam os fios de linho em tecido, ou os equipamentos que os homens usavam para trabalho de carpintaria. 

Nas fazendas, longe da cidade, não havia água encanada nem eletricidade. Para iluminação, usavam velas de cera ou lamparinas a óleo de nós ou querosene. Tinham que estar atentos para não desperdiçar. A água vinha de um poço que ficava perto da casa da fazenda ou de uma bica de água corrente. No campo havia "i fopp", as lagoas alimentadas pela água da chuva, de onde bebiam os animais e também regavam a horta e jardim. 

Do campo para a mesa

O Vêneto é uma região com vocação agrícola e foi bem sucedido na renovação e na modernização dos seus métodos de trabalho. Há hoje uma produção de qualidade com fortes laços com a indústria. Atualmente há ali forte produção de queijo que inclui o asiago, e embutidos, sobressaindo-se a sopressa vicentina, salame com pouca gordura, e a luganega, linguiça fresca de carne suína. Quanto aos vinhos, produzem os tintos Valpolicella e Amarone, e o espumante Prosecco. O Vêneto tem também uma vigorosa produção agrícola, sendo o arroz, largamente produzido na região. Devido a vigorosa produção agrícola, alguns dos mais tradicionais pratos da região do Vêneto levam vegetais. Um dos seus ingredientes mais característicos é o arroz sendo os pratos que levam arroz e o risotto muito prestigiados em toda a região. Mas além do arroz, também utilizam muito o feijão. 

Por volta de 1530 os portugueses e espanhóis levaram das Américas para a Europa a batata, o milho e o feijão. Foi uma verdadeira revolução na dieta europeia. Logo o feijão tornou um ingrediente de primeira necessidade na Itália e reforçou a dieta da população por ser fácil de cultivar. Antigamente, no Vêneto, o chamavam de fasioi, mas no italiano padrão se diz fagiolo.

Um prato típico do Vêneto é a pasta e fagioli in brodo, um caldo que combina massa e feijão temperado com alho e salsinha. É especialmente apreciado no Vêneto durante o inverno muito frio. Trata-se de um prato nutritivo, rico em carboidratos e proteínas. Coziam a massa junto ao feijão, aproveitando todo o amido dos grãos dessa leguminosa e também acrescentam cotenna ou cotica, a pele de porco, rico em calorias e gordura, um ingrediente da cozinha camponesa, do tempo em que não se jogava nada fora. Alguns acrescentam a pancetta, a barriga do porco curada no sal, salgada, temperada e maturada por cerca de três meses e outros ingredientes como a cebola, cenoura e salsão. O resultado é uma sopa aromática e saborosa tão densa que a colher se mantém na posição vertical dentro da panela.  Os italianos dizem: “da reggere il cucchiaio in piedi” . Acredita-se que a receita da pasta e fagioli in brodo originou-se na Idade Média e todos concordam que nasceu entre os camponeses. Trata-se de um prato econômico, mas rico em sabor e calorias.  É importante lembrar que estas são receitas aprimoradas de pratos que os camponeses comiam quando havia boa produção de alimento no campo.

O leite tinha muita importância na dieta dos camponeses. Era normalmente reservado para crianças e doentes ou usado como ingrediente para cozinhar castanhas e legumes. A maior parte do leite era usada para se fazer manteiga e queijos para o consumo familiar ou como produto para ser vendido ou ser trocado por outros produtos. 

O pão era artigo de luxo em algumas casas e era apenas preparado e assado em ocasiões especiais como aniversários. Geralmente era preto, feito com uma mistura de farinha de centeio, água e fermento. O fermento era obtido à partir de um pedaço de massa anterior esquecido em um canto da dispensa. As vezes misturavam batatas cozidas e amassadas que dava ao pão ar de frescura e permitia conservação prolongada. Depois de amassada, a massa descansava para crescer e em seguida os pães eram cozidos na lareira no final da noite, enterrados sob as brasas e cinzas ainda queimando. Depois de algumas horas, surgia um pão achatado e escuro, duro e nem sempre cozido, impregnado de cinzas. Depois de esfriar, era limpo com um pano de prato e depois colocado no armário. O número de pães assadas dependia do número de membros da família. Na hora de comer, temperavam com manteiga ou, em alguns casos, óleo de noz. O azeite de oliva, naqueles dias, era uma raridade a mesa dos camponeses por ser muito caro.

Mas na segunda metade do século XIX, eram poucos os camponeses que tinham a sorte de chegar em casa a noite e poder comer sopa com massa e feijão, batata, um pedaço de queijo e ter soro de leite para beber. Edmondo De Amicis, ao descrever a dieta dos camponeses, nos ajuda a entender como era deficiente: “Depois de um dia de trabalho não encontrava à mesa nada mais do que uma sopa de cebola, e que à noite acordava com fome, mas não ousava comer para não tirar o pão dos filhos, que já o tinham escasso (...)” De Amicis falava dos soldados que lutaram na guerra pela unificação e dos camponeses que perdiam as terras por não poderem pagar os pesados impostos. Segundo ele alguns camponeses da zona de Mantova (Mântua, Lombardia), nos meses frios atravessavam o rio Pó para colher tuberosas pretas (tubérculos como a beterraba) para se sustentarem e tentar sobreviver durante o inverno. Mais ao sul, os Calabreses viviam de um pão de lentilhas silvestres, semelhante a uma mistura de serragem de lenha e lama, e nos anos ruins comiam ervas rasteiras dos campos, cozidas sem sal, ou devoram as pontas cruas das leguminosas da forragem. Outros historiadores dizem que se podia morrer de inanição e a única alimentação da classe rural não passava de polenta. Voltando ao Vêneto, o preço da carne era absurdamente caro para eles, assim como do pão de farinha de trigo.

Podemos entender isso ao fazermos uma comparação do salário de um camponês e o preço de alguns itens em 1900. Os valores são em Liras italianas (₤), que vigorou na Itália entre 1861 e 2002. Por exemplo, um trabalhador na fábrica ganhava ₤1,5 ÷ 2 por dia e uma mulher ₤0,80 ÷ 1 por dia, para dias úteis de 11 ÷ 12 horas e 6 dias por semana. Os salários de um camponês giravam em torno de ₤0,60 por dia. O pão custava ₤0,45/kg, macarrão ₤0,56/kg, farinha milho ₤0,25/kg, farinha de trigo ₤0,43/kg, carne ₤1,30/kg, leite ₤0,26/1L, açúcar ₤1,54/kg, 10 cigarros ₤18, um jornal ₤0,05. (fonte)

Ingredientes como óleo e sal precisavam ser comprados no mercado. Quando sobrava algum dinheiro, compravam laringas scopeton, sardinhas salgadas exportadas da Noruega. Mas a grande maioria do que consumiam era cultivada e produzida por eles mesmos. Os camponeses aproveitavam qualquer coisa que encontravam no campo para complementar a dieta como rabanetes selvagens e com sorte, encontravam cogumelos. Na região das montanhas era comum comerem o cráuti, uma espécie de repolho macerado e guardado com sal em vasilhame de madeira, semelhante ao chucrute. Comiam também o radicchio rosso, chicória vermelha amarga que era temperado com vinagre forte. 

Mas durante o inverno, com muita neve, não havia verduras e legumes. Viviam da comida armazenada, especialmente conservas, marmeladas, geleia de amoras e nozes com polenta. Tudo precisava ser racionado e usado com parcimônia. A nona controlava as porções de comida para o marido, filhos, noras e os netos. Ninguém ousava contestar! Geralmente tinham apenas duas refeições por dia, uma às nove horas da manhã e a outra às quatro horas da tarde. Um pai, mesmo esgotado e faminto depois de trabalhar pesado no campo, ainda dava parte de sua comida ao filho.

Em uma cena do filme Novecento, um camponês entra em uma casa minúscula construída com paredes de pedra e coberta de feno. Ele tem um semblante triste e está com o chapéu nas mãos. Dentro do chapéu há quatro pedaços de polenta frita que ele joga sobre a mesa. Um casal de velhos desdentados e algumas crianças apreçam-se em pegar os pedaços e começam a comer. Todos muito magros! Ele olha para cima e vê um único peixe pendurado por uma linha amarrado no teto, talvez secando para ser comido mais tarde. O garoto reclama: -“Papai. Não tem mais polenta!”, e a garota diz: - “Papai. Ainda estou com fome!” - E o pai responde: - “E eu farei vocês esquecerem a fome.” - E começa a tocar uma gaita para distraí-los.

A base da dieta daqueles camponeses era a polenta. Eram fatias de polenta, duras e sem gosto, que eles encostavam na sardinha antes de comer pra sentir o gosto do peixe. Isso se chamava ‘pociare’. Não comiam o peixe, era só para sentir o gosto dele na polenta e conseguir engolir. Hoje o ato de ‘pociare’ é comum quando se termina de comer macarrão com molho de tomate ou qualquer outro prato com molho. Passa-se um pedaço de pão no molho que sobrou no prato antes de levar à boca. 2 Mas quando se fala aqui em polenta, nem sempre se trata da polenta como nós brasileiros a conhecemos, feita com fubá ou farinha de milho. No Vêneto a polenta era também feita com a farinha do sorgo turco e era para eles o ‘pão nosso de cada dia’ que pediam na oração do Pai Nosso durante o terço.

Doença e morte

As mulheres grávidas tinham os filhos em casa no quarto principal ou no estábulo com a ajuda de uma ‘levatrice comunale’, parteira municipal, e outras mulheres e não em hospitais como acontece hoje. Desde o tempo dos Gregos e Romanos, o parto acontecia em casa com a ajuda de outras mulheres casadas que já eram mães e que tinham experiência. Algumas dessas mulheres, mais experientes, se tornaram parteiras profissionais. A tarefa da parteira ia além de ajudar o bebê a nascer, ela também dava orientações às mães sobre o descanso e a dieta a seguir. Depois de nascer, a criança era enrolada do pescoço aos pés, e a cabeça era coberta com uma touca de algodão cuidadosamente trabalhada. Algumas mulheres morriam no parto visto que a cesariana era um procedimento raro e perigoso.

Também, o fato de que os camponeses não tinham acesso a alimentos suficientes e variados que contém a niacina (vitamina do complexo B) como a carne, leite e derivados, verduras e outros tipos de cereais como trigo, arroz e milho, causava um desequilíbrio nutritivo, cuja consequência era a doença. Uma doença muito comum entre as populações que faziam uso exclusivo da polenta de sorgo ou milho como base alimentar era a pelagra (pellagra em italiano) que é uma doença causada pela carência ou não absorção da niacina (vitamina B3) no organismo. Os sintomas incluem o surgimento de manchas negras na pele, que após alguns dias geram crostas, diarreia e demência.

Entre os séculos XVII e XIX a pelagra golpeou, sobretudo a população da zona setentrional (norte) da Itália, particularmente a mais pobre do Vêneto oriental (leste) e do Friuli. Entre 1804 e 1805, o governo austríaco, que dominava o Vêneto, conduziu uma pesquisa sobre a doença nas províncias de Treviso e Padova e concluíram que a pelagra não era contagiosa nem hereditária, mas era consequência do abuso de alimento vegetal, particularmente do ‘granturco’ (sorgo turco), planta de onde provinda a farinha para se fazer  polenta. Em 1881 o governo pôs em prática programas para neutralizar a doença. O interessante é que as populações que consumiam polenta com leite, em particular em algumas zonas da Lombardia, não eram afetadas por esta doença. Mais tarde descobriu-se que o leite contém proteína niacina.

Preservar os alimentos era um problema muito sério. A primeira geladeira doméstica surgiu em 1913. Até então, os alimentos perecíveis precisavam ser consumidos no mesmo dia ou no máximo, nos dois dias seguintes. Uma maneira de conservar alimentos era coloca-los no sal, enterrá-los na gordura, secar ou defumar. Foram os métodos usados por milhares de anos. O problema é que devido à má preservação dos alimentos, os casos de teníase, provocado pela tênia encontrada na carne de porco, ou vermes intestinais eram frequentes. Quase cem anos depois, meu avô, tinha o costume de guardar linguiça de porco em latas de banha, na fazenda onde morava em São Paulo.

As doenças comuns eram tosse, reumatismo, queimaduras, picadas de abelhas, dor de dente, dor de ouvido, dor de cabeça, constipação infantil, dor de abdômen, torcicolos e vermes intestinais. Quando alguém ficava enfermo, não faltavam parentes ou vizinhos com conselhos de como resolver o problema. Recorria-se aos remédios caseiros como unguentos feitos com manteiga e açúcar ou cebola, fatias de batatas, claras de ovos batidas em neve, gotas de leite quente no ouvido, mastigar salsinha, e chás. Se o paciente piorasse chamavam o pároco, um professor, idosos ou pessoas com habilidades especiais que conheciam as propriedades das ervas. Em caso de deslocamento ou fratura, resolviam em casa mesmo. Em casos mais graves, recorreriam ao poder curador da oração aos vários santos que acreditavam ser milagrosos. Raramente tinham a assistência de um médico que para eles, só queriam pegar o dinheiro que eles não tinham. Só havia hospitais em cidades grandes o que exigia deslocamento, por isso era comum chamar o médico em casa que cobrava caro pela visita e consulta.

O mesmo se refere aos dentistas. Na Idade Média e ao longo do século XIX, a odontologia não era uma profissão em si. Muitas vezes, os tratamentos eram realizados por barbeiros e monges e os tratamentos eram feitos sem anestesia. A partir de 1846 os dentistas profissionais começaram a usar éter como anestésico e somente a partir de 1901 teve início o uso da procaína (novocaina) como anestésico local. Os procedimentos mais comuns e mais baratos eram a extração dentária, por isso não era raro ver uma pessoa ainda jovem sorrir sem alguns ou vários dentes na boca.

Em 1807, quando a Itália foi anexada pelo Império Napoleônico Francês, muitas ordens religiosas criaram Congregações de Caridade, instituições não religiosas que davam assistência médica aos camponeses.  Entre 1825-1836 a Itália foi atormentada pela epidemia de cólera. Nesta época também teve início a vacinação entre a população. As igrejas deixaram de ser locais de sepultamento e os cemitérios passaram a ser feitos nos subúrbios das cidades.

Por ocasião do luto, era costume costurarem uma tira de tecido preto na lapela do paletó, ou usavam uma pulseira preta no braço. As mulheres se vestiam de roupas pretas. O luto podia durara até três anos. Era um momento dos parentes, vizinhos e amigos mostrarem solidariedade e assim participavam no luto da família. Quase todos compareciam ao funeral. Nas semanas e meses seguintes, as famílias em luto tinham o apoio da comunidade. Os mais jovens, ajudavam os mais velhos nos trabalhos mais pesados ​​do campo e muitas vezes, no domingo de manhã, os jovens cortavam feno para viúvas com filhos pequenos.

Inverno

Os meses de julho e agosto são os mais quentes na Itália. Durante o verão, os camponeses trabalhavam dobrado para se preparar para o inverno. A primavera e o outono têm temperaturas frias, mas suportáveis, entretanto no inverno elas chegam a ser abaixo de zero. Os camponeses tinha que aproveitar o tempo bom e uma das grandes preocupações para a população era armazenar lenha pra o inverno que era muito disputada pelos vizinhos. A lenha era usada no fogão para cozinhar e também para aquecer o interior das casas. Para economizar lenha, os membros da família ficavam todos juntos na cozinha, em volta do fogão que servia de lareira. Caso terminasse a lenha ou o inverno se prolongasse, apelavam para o esterco de vaca. Como não havia aquecimento nos quartos, à noite, cobriam-se com cobertas de malha de lã e um tipo de edredom recheados com penas. Alguns enchiam grandes sacos de linho com folhas de fágio, uma espécie de arvore, e com eles cobriam as camas dos rapazes, moças e crianças, pois não havia cobertas ou cobertores para todos.

Passavam a maior parte do dia dentro de casa para se proteger do frio e saiam apenas para o estritamente necessário. Os animais ficam protegidos no estábulo. O sol nasce aproximadamente às 8 da manhã e se põe as 16h30, por isso os dias eram mais curtos e passavam rápidos, enquanto as noites eram muito longas. Às 16 horas já estavam jantando. Este contato aproximado somado a falta de ventilação e higienização facilitava o contágio de doenças causadas por vírus, mas eram totalmente ignoradas por eles.

O que vestir durante o inverno? Era a nona que geralmente ordenava a troca de roupas. Nas áreas montanhosas mais geladas, os homens vestiam ceroulas longas até o tornozelo e sobre elas calças mezalana [meia-lâ]. Os idosos atavam no peito atou uma peturina, uma malha de lã pura, e sobre ela colocavam a camisa e depois um colete e mais uma blusa de lã. Ainda tinham uma capa de lã que só era usada quando saiam para o lado de fora de casa. Nas montanhas, muitos passavam o inverno todo com a mesma roupa que só era trocada na primavera. Com o tempo gelado, roupas costuradas no corpo e falta de aquecimento, não era costume tomarem banho durante o inverno e vestindo aquela armadura contra o frio, eles tinham pouca mobilidade. 

As roupas eram geralmente feitas de cânhamo e algodão ou pele de animais, as roupas de lã eram raras. No dia a dia era comum o uso de ‘zoccoli’ (tamancos) na parte norte da Itália. Os sapatos, velhos e rústicos, marcados pelos anos de uso, só eram calçados quando iam à cidade. Quando rasgavam ou quebravam, concertavam solas e saltos em casa mesmo. Nas festas, os homens sempre usavam um chapéu de pano ou feltro com aba decorado com uma fita e um laço ao redor do cone. Por cima da camisa, usavam o colete abotoado e um lenço amarrado ao redor do pescoço ou da gola da camisa, também usavam paletó.  Para se proteger do frio, usavam um manto negro e pesado, semelhante a uma capa. O terno era usado e depois guardado sem lavar ou passar. Com o tempo ficava amarrotado e com aspecto terrível!


As mulheres vestiam roupas simples: uma saia longa até os pés, uma blusa de algodão e sobre ele um corpete. Em casa sempre vestiam um avental, também longo, preso a cintura. Os cabelos eram longos, mas estavam sempre presos em um coque na nuca e eram escondidos por um gorro ou lenço amarrado na cabeça. Sobre os ombros, usavam um xale. Quando iam a festas ou à missa, cobriram a cabeça com lenços de lã de cores mais vivas. No inverno predominavam as cores escuras, principalmente o preto. Mas nem todas as famílias podiam vestir tanta roupa e as famílias mais pobres usavam o que dispunham.  A medida que as crianças cresciam, passavam as roupas para as crianças menores. Desta foram, as crianças raramente usavam roupas novas. 

Levando tudo em consideração, seria muito fácil julgá-los como avarentos (mão de vaca e pão duro), mas conhecendo sua história, fica mais fácil entender seu comportamento como grupo, comportamento esse que transmitiram para as futuras gerações.

Tempo de rir

Os muitos relatos sobre imigração, falam sobre a vida difícil dos emigrantes na Itália, do trabalho duro, da fome, miséria, mortes, do inverno e da difícil travessia do. Não há como contestar que foram tempos difíceis, mas não há também como negar que a vida deles tinha momentos de alegria. O ser humano sempre encontra nas pequenas coisas da vida motivos para se alegrar, mesmo durante o inverno. 

O estábulo desempenhava muitas funções: era um abrigo para animais, mas, na estação fria, era também um local de convívio. A partir de novembro, quando escurecia mais cedo e a temperatura caia, havia muito pouco a fazer. A família então se reunia no celeiro ou estábulo. Os vizinhos eram acolhidos com satisfação para passarem as noites de inverno fazendo filó. O filó, de uso regional vêneto e friulano, refere-se à vigília de inverno nos estábulos ou junto à lareira, onde se contava e ouvia histórias. Os homens sentavam de um lado, as mulheres do outro e ali ficavam contando histórias e anedotas. Os vizinhos traziam as cadeiras de suas casas e depois as levavam de volta. As crianças sentavam-se no chão, sob palha de trigo ou folhas de fágio. 

Enquanto conversavam, faziam algum trabalho manual, os homens esculpiam tamancos, empalhavam cadeiras. Alguns apenas jogavam cartas. As mulheres conversavam fiando lã, ou remendando roupas. Também faziam tranças, bolsas, bordados, crochê ou tricô. Sempre ocupadas, não paravam de trabalhar nem para ‘chiacchierare’ (jogar conversa fora). Como o espaço era restrito, as pessoas ficavam muito próximas umas das outras, o que, além de agradável, era uma forma de se aquecer. Nessas vigílias, os rapazes e as moças, mesmo sob o olhar atento dos pais, trocavam olhares e se aproveitavam dessa proximidade para sussurrar palavras de amor. Desta forma surgiam os namoros e os futuros casamentos. Alheia a tudo isso, as crianças pulavam e saltavam do mezanino sobre o feno ou brincavam com as sombras produzidas pelas luzes das velas ou lamparinas. As crianças também amavam brincar com seus nonos, geralmente mais permissivos que os pais. Passavam o tempo fazendo brincadeiras de adivinhar, de esconder e achar e serrote. Também brincavam com os animais e montavam bodes e ovelhas que faziam de cavalo. 

Quando se cansavam, paravam para ouvir os mais velhos contar histórias de ogros, lobos, bruxas e castelos de fadas. Contavam também historiam engraçadas e divertidas. O ambiente era aquecido pela lareira, e também pela respiração das vacas. O ar viciado e úmido com forte cheiro de excremento e mofo não perturbava ninguém, já acostumados a eles. Então, em um determinado momento, alguém dava um sinal e, em alguns minutos, todos voltavam para suas casas. Muitas crianças dormiam ali mesmo, no colo de alguém mais velho, e eram colocadas na cama sem acordar. Mais uma vez, essa proximidade com os animais eram um perigo para a saúde, totalmente ignorado pelos camponeses.

No Filme 1900 (Novecento) há cenas de crianças se divertindo na fazenda, correndo, pegando rãs no rio, se escondendo no feno. Todos misturados. Em outra cena, vemos os trabalhadores comendo, todos juntos em uma grande mesa. As mulheres colocam a comida no centro da mesa, de onde, os homens sentados, se servem com suas colheres e enchem os pratos. Enquanto alguns comem, algumas mulheres tiram piolho da cabeça dos meninos e brigam com outras por causa das traquinagens dos filhos. O corcunda tenta filosofar, recebe uma polentada na cara e todos desabam a rir. Deboche típico dos italianos! No domingo, dia de descanso, sob a sombra das árvores, fazem piquenique ao lado de um rio. Alguns homens tocam gaitas e os jovens dançam. Comem melancia e bebem vinho tinto. Na vila há um teatro de marionetes cujas peças falam sobre o socialismo e a revolução. Essas peças era uma forma comum de entretenimento, mas também doutrinar e educar as crianças.

Os pequenos tinham pouco tempo para se divertir, mas sempre achavam um jeito de brincar. As meninas tinham bonecas feitas de pano recheadas com serragem. Sendo pobres, faziam seus próprios jogos com os materiais disponíveis e a imaginação. Os jogos eram disputados em espaços ao ar livre. Os jogos mais frequentes eram pega-pega, o jogo de esconde-esconde, brincar de rodas, pular cavalinho, entre outros. 

No domingo, alguns iam assistir a missa na igreja, os que moravam longe da igreja, ainda trabalhavam em casa na parte da manhã. Depois do almoço, passavam tempo conversando, bebericando e cantando. As crianças, sentadas no chão escutavam os cantos executados pelos adultos tentando imitá-los e acompanhá-los. As mulheres e moças conversavam na cozinha e enquanto lavavam a louça, trocavam novidades, comentavam os encontros e falavam da vida alheia. Contavam as novidades sobre os conhecidos e parentes vistos pela manhã na igreja, ou na feira. Os mais velhos tiravam um cochilo, e os jovens procuravam uma festa ou quermesse pra ir. As festas eram geralmente relacionadas a algum santo como festa de Santo Antônio. Era nessas festas que alguns rapazes tentavam subir na cuccagna (pau de cebo) para pegar o difícil prêmio. Alguns domingos eram dias de festas. A rotina mudava com os almoços de batizado, e com as festas de casamento.

Casamento e nascimento dos filhos

O casamento sempre era um evento de grande importância para os nubentes e para os parentes e amigos que participaram com entusiasmo neste evento. Geralmente, o dia do casamento se restringia a fronteira doméstica, com os parentes mais próximos. Eles seguiam alguns costumes e rituais provenientes de várias gerações anteriores.

Durante o namoro, o casal de namorados geralmente se encontravam à noite após o jantar em frente à casa ou nos estábulos, mas ainda sempre perto dos pais, parentes e conhecidos. Somente aos domingos tinham mais liberdade, quando iam a missa, pois podiam conversar em frente à igreja, antes ou depois da missa. Quando um rapaz e uma moça "conversavam", isso significava que havia sérias intenções entre eles. O pedido de casamento era feito pelo pai do noivo. Os pais iam à casa da futura nora para pedir oficialmente sua mão. Aquela era também a ocasião para definir a data do casamento, e combinar as várias tarefas das duas famílias ou recém-casados, como a preparação do enxoval.

Quando a menina ficava mocinha, por volta dos treze anos, com a ajuda da mãe, começava a fazer o enxoval que geralmente incluía dois lençóis, duas fronhas e algumas toalhas de mesa e banho. Isso era embrulhado em panos e guardadas em baú, providenciado pelo pai da moça. Enquanto isso, o noivo começava a fazer os móveis da casa. Trabalhava sozinho, ou com ajuda do pai ou irmãos à noite ou no domingo. Não precisavam de muitas coisas, pois na maioria dos casos, a noiva tinha que “andare in casa” ou seja, coabitar com a família do noivo, onde a sogra comandava tudo.  Por isso era comum haver enormes famílias habitando sob o mesmo teto, o nono, a nona, pai, mãe, cunhados, tios e primos.

No dia do casamento a noiva usava um vestido simples. Aparentemente, o costume de usar vestido branco começou apenas após a Segunda Guerra Mundial. Às vezes ela usava um véu na cabeça. O noivo vestia um terno elegante, geralmente escuro. Depois do casamento, esse terno era guardado para ser usado em ocasiões especiais. Tornava-se a lendária roupa de festa. Desde 1865, com a aprovação do novo Código Civil, os católicos passam a se casar duas vezes, na prefeitura e na igreja. Na igreja, para não viver em pecado mortal. No civil, para o bem dos filhos, que de outra forma não seriam reconhecidos como legítimos pelo poder leigo e também para evitar o perigo da poligamia. Mesmo depois do casamento civil, os noivos retornavam às casas de seus respectivos pais; sem coabitação até acontecer o casamento religioso.

Na manhã do casamento na igreja, o noivo, acompanhado por seus pais ia até à casa da noiva. De lá, seguiam para à Igreja em uma procissão na seguinte ordem: noiva e pai, noivo e mãe, mãe da noiva e pai do noivo, testemunhas, parentes e amigos aos pares. Seguiam em charretes ou a pé. Após a cerimônia de casamento na igreja, a noiva era acompanhada em casa pelo noivo. Seguia-se outra procissão até a casa da sogra. Lá a sogra dava uma concha à nora como sinal de boas-vindas. Não havia lua de mel naquela época e o costume de dar presentes aos noivos só se espalhou por volta de 1930. Antes, se fosse dado algum presente, eles eram geralmente ovos ou bolos. Se alguém tivesse mais posses, daria uma galinha que acabava indo se juntar as galinhas da sogra. 

Não demorava muito, começavam as cobranças para o casal ter filhos. Além das crianças serem consideradas uma bênção de Deus, significava mais braços para o trabalho agrícola. Geralmente não demoravam muito para ser anunciada a gravidez. Depois da calorosa demonstração de alegria, começavam a especulação: menino ou menina? Un figlio maschio (um filho macho) era mais desejado porque significava mão-de-obra preciosa no campo, já uma menina significava prejuízo, pois a família teria gasto preparando um enxoval para seu casamento e também perderiam a força de trabalho, já que ela passava para a família do noivo.

As mulheres grávidas não eram poupadas e geralmente continuavam suas ocupações diárias até o trabalho de parto. Alguns dias depois do parto, já voltava a cuidar do trabalho doméstico e em alguns casos até a trabalhar nos campos. Logo depois do nascimento, geralmente dentro de uma semana, faziam o batismo, pois tinham medo que o bebe morresse pagão. Em alguns casos, o batismo era administrado em casa, imediatamente após o nascimento e depois completado com a cerimônia da igreja.

Além da primeira parte do filme Novecento (1900), assistir a outro filme italiano A Arvore dos Tamancos (1978) é fazer uma viagem no túnel do tempo e partilhar a vida e a rotina dos camponeses no norte da Itália. O filme trata da história de um casal de camponeses, que luta para não transferir ao pequeno filho o legado de suas vidas de trabalho no campo, duro e incessante e da falta de acesso ao conhecimento. Batistini, o pai do menino, é chamado à sacristia onde assume perante Deus o compromisso de enviar seu filho de sete anos a escola. Para isso, é preciso tirá-lo do trabalho do campo, algo que preocupa o pai. Afinal de contas “o que vão dizer quando virem o filho de um camponês indo à escola?”. Na grande propriedade tudo pertence ao senhoril, a terra, as casas, os utensílios e as árvores. Ao cortar uma árvore escondido para fazer um par de tamancos para o filho, cujos pares velhos quebraram, Batistini é descoberto pelo senhoril e é expulso da fazenda. Mas o filme vai além dessa história e mostra incidentes em torno do dia a dia de outras famílias de camponeses na mesma fazenda. Chama atenção o fascínio da neta pelo avô que o ajuda a plantar tomates no final do inverno em um cantinho de terra, que será vendido na cidade. O trabalho da lavadeira de roupas à beira do rio, que também é parteira, a festa para matarem um porco, a tensão de um camponês ao encontrar uma moeda em uma festa na cidade e o trabalho para escondê-la, a dificuldade em lidar com os animais, o filó, o namoro e casamento de um jovem casal. As rezas e orações em diferentes momentos, a presença constante do pároco e sua influencia na vida dos camponeses, a força da religião que permeia a todos e alimenta suas almas como no milagre obtido por uma viúva que cura sua vaca com água benta. Às vezes esquecemos as histórias das famílias e prestamos atenção nas banalidades do cotidiano como a terra, a natureza, as plantações, a neve no inverno, o renascimento com a chegada da primavera, o rio e o transporte de cargas e pessoas no barco.

Volto agora à pergunta feita no inicio deste capítulo: Como era viver no Vêneto na primeira metade do século XIX? Sem relatos escrito ou oral dos meus antepassados, me resta especular sobre a vida deles como grupo. Eles viviam em núcleos familiares, trabalhavam no campo, e certamente meu bisavô Giacomo Sarti já o fazia desde os dez anos de idade. Eram gente simples que trabalhavam muito e passaram por dificuldades relacionadas à economia, saúde e temperatura. Posso imaginá-los trabalhando nas plantações, cuidando dos animais, recolhendo lenha para estocar, e as mulheres ocupadas nas suas atividades domesticas e as crianças sempre presentes em cada aspecto dessa rotina. Os visualizo rezando o terço, assistindo missas, casando os filhos, batizando os netos e enterrando seus mortos. Também os vejo sentados e espremidos no estábulo ouvindo histórias dos mais velhos no inverno, mas também o grupo de parentes e vizinhos sentados sob a sombra de uma arvore, em um domingo de tempo agradável, depois do almoço, rindo, conversando, cantando enquanto as crianças esgotam suas energias correndo, brincando e até brigando entre si. Nesses momentos conseguiam esquecer a miséria, a fome, a doença e a morte que os cercava diariamente, os governantes, os impostos pesados e a falta de perspectiva de uma vida melhor, especialmente para os mais jovens.

Mas voltando aos meus antepassados, como não dá para tapar o sol com a peneira, um dia tiveram que encarar a vida de frente e foi assim que decidiram que deixariam tudo para trás para começar uma nova vida em um lugar totalmente desconhecido chamado Brasil.  

Referências:

  1. Novecento é um filme ítalo-francês de 1976. Trata-se de um drama dirigido por Bernardo Bertolucci. A fotografia é de Vittorio Storato e a trilha sonora de Ennio Morricone. Foi filmado em Emília. As cenas retratram a maneira como os camponeses viviam no final do século XIX e o inicio do século XX. Mostra a exploração das classes superiores e a luta diária para se manterem vivos numa Itália empobrecida. 
  2. Pociare - "Uno scrigno di gioie culinarie alla Bassona" - Recensione di Trattoria il Borgo Vêneto - No site da Tripadvisor: " ... le pappardelle si uniscono alla carne d'anatra tagliata al coltello, e a una fetta di pane al profumo d'arancia, pane che servirá per "porciare". https://www.tripadvisor.it
  3. Segundo a tradição a palavra cesariana deriva da forma como o imperador Júlio César nasceu em 100 a.C. Segundo João Malalas, um cronista bizantino, a mãe dele morreu no nono mês de gravidez, e sua barriga foi cortada e ele sobreviveu. Seu nome, César, derivaria da palavra latina 'caedo', que significa cortar. Embora há evidências de que a cesariana como procedimento de parto já existia antes de 100 a.C.
  4. A Arvore dos Tamancos (1978) L'albero degli zoccoli é um filme ítalo-francês dirigido por Ermanno Olmi. O filme retrata as dificuldades vividas por cinco famílias de camponeses do norte da Itália, no final do século XIX. Como forma narrativa, no roteiro também assinado por Olmi, a história apresenta fragmentos dessas famílias, formando, ao final, um grande painel de como era a vida dos trabalhadores rurais no final do século XIX. Quando um camponês corta escondido uma árvore para fazer um par de tamancos para o seu filho que não tem sapatos para ir a escola. O elenco foi formado por camponeses reais da província de Bérgamo, Itália. É um filme que examina com detalhes os gestos das pessoas. Usei algumas fotos do filme para ilustrar o texto. O filme está disponível no Youtube com legendas em português. https://www.youtube.com/watch?v=hTWhPfUmn1k&t=9177s

  1. Come si viveva una volta -  TRATTI DI VITA QUOTIDIANA NEL 1900-1905 AL COINDO E LAIETTO
  2. Consiglio Regionale Del Veneto – Perfil histórico – Pré-História (primeiro parágrafo) http://www.consiglioveneto.it/crvportal/pageContainer.jsp?n=100&p=105&c=8&e=135&t=0
  3. Fra terra e acqua. L’azienda risicola di una famiglia veneziana nel delta - https://books.google.com.br/books?aree+braccianti+padana p. 368
  4. http://www.cordola.it/cercando-le-nostre-radici/come-si-viveva-una-volta/
  5. https://library.uab.edu/locations/reynolds/collections/regional-history/pellagra/history
  6. Itacir, Arlindo - Polenta e Liberdade pp 67, 192
  7. Livro Sabores da Itália em PDF – Vêneto p 94 com textos de J.A. DIAS LOPES e MASSIMO FERRari, disponível no site:  http://www.saboresdaitalia.com.br/
  8. O povo Vêneto – A vida dos camponeses (em italiano) - https://popoloveneto900.weebly.com/vita-dei-contadini.html
  9. Pelagra - https://it.wikipedia.org/wiki/Pellagra
  10. Sapiens – Uma breve história da humanidade / Yuval Noah Harari; tradução Janaína Marcoantonio. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2018. [Tradução de Sapiens – A Brief History of Humankind]
  11. Sorgo - https://www.macrolibrarsi.it/speciali/cos-e-il-sorgo.php
  12. Sorgo e milho – a diferença entre os dois - https://books.google.com.br/books - differenza+tra+sorgho+e+mais
  13. Sorgo e milho - https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/13242210/sorgo-e-rico-em-nutrientes-e-antioxidantes-aponta-pesquisa
  14. Unificação italiana - https://www.todamateria.com.br/unificacao-italiana/
  15. Unificação italiana – Idade Moderna -  https://www.historiadomundo.com.br/idade-moderna/unificacao-italiana.htm
  16. Ville residenziali nell'Itália tardoantica - https://books.google.com.br/books? interno+di+una+villa+italiana


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Depois de muito tempo buscando e colecionando documentos e informações, eu tinha um mosaico histórico da família. Eu sabia de onde eles vieram e quando chegaram ao Brasil. Giacomo Sarti, Felice Feltrin e Felice ‘Bon’ Tiozzo com seu filho Carlo Tiozzo foram os emigrantes que fizeram a travessia do oceano Atlântico a fim de iniciar uma nova vida e formar novos clãs no Brasil. Eles tornaram-se os patriarcas de novas famílias aqui. Segundo o dicionário 1 , patriarca é um chefe de família, por extensão de sentido pessoa mais velha que se respeita, obedece e venera e que tem grande família. Neste sentido, os três emigrantes da minha família eram patriarcas. Felice Feltrin veio casado com Luigia Gabrieli e seus filhos e esses aqui se casaram e tiveram vários filhos. Os outros dois emigrantes, Giacomo e Carlo vieram jovens, ainda solteiros. Aqui casaram-se e tornaram-se patriarcas. Farei um breve relato de cada um deles, baseado em fatos e nas informações coletadas nos documentos encontrado

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