Como era viver no Vêneto no século XIX, entre 1825, quando Felice “Bon”
Tiozzo provavelmente nasceu, em 1888? Estudei a história do povo vêneto e a
geografia da região, busquei entender o momento político e social que serviu de
cenário para a grande emigração, mas ainda restava o interesse em saber sobre a
rotina e a vida dos camponeses italianos do Vêneto em torno de 1888. Assim saberia quanto desses costumes do dia a dia eles trouxeram e mantiveram ao chegar ao Brasil. Quanto das coisas que membros da minha família, incluindo eu, ainda faz, ainda diz, e são resquícios dessa cultura? Como não
tenho relatos diretos da minha família em forma escrita ou mesmo oral, para
matar a curiosidade fiz uma viagem no tempo mergulhando nas informações deixadas
por outros escritores e pesquisadores. Além de livros e textos, encontrei rico material em alguns filmes que considero verdadeiras obras primas: Novecento (1900) de Bernardo Bertolucci (1976) e L'albero degli zoccoli (A Arvore dos Tamancos) de Ermanno Olmi (1978). Para ajudar a ilustrar os meus textos, usarei fotografias destes dois filmes.
Trabalho
Na segunda metade do século XIX a Itália era ainda predominantemente
agrária, pois o processo tardio da unificação do território itálico resultou no
atraso do desenvolvimento industrial. O regime de
propriedade de terra era ainda fundamentado no feudalismo e no semifeudalismo. Para
evitar dividir a propriedade entre os herdeiros, o dono das terras, ao morrer, deixava
em testamento que apenas um filho herdaria as terras e a vila. Os outros filhos
recebiam uma anuidade vitalícia (valor anual fixo) e os bastardos, geralmente nada.
O filme 1900 (Novecento - 1976),1
de Bernardo Bertolucci, mostra um panorama dessa época. Outros proprietários agiam
de forma diferente e dividiam a propriedade em partes iguais aos filhos
herdeiros. Com o tempo, muitos herdeiros se endividavam e não conseguiam pagar
os pesados impostos. Com isso, perdiam as terras para os credores e tudo o que
fazia parte dela ou então vendiam sua parte para outros membros da família e se
viam obrigados a buscar trabalho em outras propriedades se juntando a milhares
de outros camponeses. Assim formou-se
uma grande massa de trabalhadores rurais de baixa renda e uma pequena elite que
concentrava a posse de terras e propriedades herdadas ou anexadas. Os filhos
desses camponeses já nasciam sem direito a herança e quase nenhuma esperança de
um dia ser patrão, ou dono de um pedaço de terra.
Contadino é a palavra italiana para camponês. Refere-se a alguém empregado em um estabelecimento agrícola e cultiva frutas, cereais e verduras, que varia conforme o clima e o solo e pode também trabalhar cuidando de animais no pasto ou estábulos. Os camponeses se sentiram conectados a terra e a natureza, da mesma forma como um filho é conectado a mãe. O contadino podia ser um pequeno proprietário, inquilino, arrendatário, ou funcionário de uma cooperativa agrícola. Algumas famílias de camponeses eram residentes fixos nas fazendas, outras famílias eram compostas de trabalhadores sazonais. A grande maioria da população morava e trabalhava no campo. As poucas pessoas que moravam na cidade, eram geralmente comerciantes ou funcionários públicos.
Os proprietários de terras e os camponeses moravam
nas fazendas. Lá ficavam a casa do patrão, as casas dos camponeses, as
estribarias dos animais e os galpões onde era guardado o material de trabalho e
se armazenava o feno, a colheita, forragens, cereais, produtos químicos,
produtos perecíveis ou até minerais. O dono da terra fornecia o terreno, a casa
e, às vezes, um pequeno lote para o camponês cultivar milho, feijão, batatas e
hortaliça para si e sua família e também criar animais como vacas, cabras e
ovelhas para o leite, e porcos, que no inverno eram mortos para obter salame e
costelas. O patrão fornecia também equipamento agrícola e animais como jumentos
e cavalos para ajudar no trabalho e, ocasionalmente, adubo, inseticidas e
adiantamentos em dinheiro. Ocupava-se de todo o trabalho e repartia o resultado
da produção com o proprietário. Os trabalhadores ocupavam as terras em sistemas
de parceria da produção como meeiros, uma das formas de parceria, e
tinha que viver com o que recebiam da venda de parte do que
produziam nas terras do Senhorio. A porcentagem poderia chegar a até cinquenta
por cento do total estabelecido. Metade do produto ficava com o patrão e a
outra metade era dividido e distribuído entre as dezenas de famílias
trabalhadoras. Alguns proprietários retinham dois terços do que era produzido e
todos os animais nascidos na fazenda em troca da cessão das terras e dos
utensílios de trabalho.
Naquela época, os camponeses não tinham segurança no trabalho nem informações. Não estavam ligados a sindicatos, a grande maioria era analfabeta e os que sabiam ler não podiam comprar jornais. Eram, portanto forçados a seguir as ordens do proprietário da fazenda, com quem compartilhavam o lucro na hora da colheita. As fazendas mais próximas aos grandes centros urbanos produziam em grande escala para as indústrias têxtil, alimentícia e de laticínios que surgiam nas cidades, mas as fazendas da Polésine eram mais isoladas e produziam em pequena escala, geralmente arroz que era vendido imediatamente após a colheita para evitar doenças e que se perdesse.
O costume era que a mulher cuidasse da casa e dos
filhos pequenos, mas também produzia alguma coisa para ajudar na renda
familiar. Durante a colheita as mulheres ajudavam no campo, mesmo grávidas ou
com filhos pequenos. Elas limpavam a
casa, cozinhavam, lavavam a roupa, cuidavam dos animais domésticos, faziam manteiga usando batedeira manual e
compotas de frutas para serem consumidas no inverno. Alimentavam as galinhas e
recolhiam ovos. O excedente era vendido ao "pulireù", o comerciante de aves. A dona-de-casa, título usado para as mulheres
casadas, não possuía dinheiro, portanto ao fazer compras nos armazéns, não
pagava, o vendeiro anotava as despesas e o valor devido para ser acertado no
futuro. As frutas e legumes, eram colhidas no pomar e na horta.
Um dia da
semana era reservado para lavar a roupa. Colocavam a roupa suja em uma tina ou
bacia e a cobriam com um pano branco sobre o qual colocavam cinzas e um pouco
de soda cáustica. Depois derramavam água quente sobre elas. Deixavam tudo de
molho por um longo tempo. Depois reviravam, esfregavam, batiam, enxaguavam e
colocavam pra secar no varal. Além de cansativo, as cinzas e a soda cáustica
arruinaram suas mãos. Outras mulheres lavavam as roupas em um riacho. As
moças solteira, além de ajudar em casa também ordenhavam vacas em estábulos ou
trabalhavam como empregadas nas casas de famílias abastadas. Elas também davam
brilho às panelas de cobre, munida de um punhado de cinza e palhas de milho.
Entretanto, na segunda metade do século XIX, como a produtividade do campo era baixíssima, sobrava muito pouco para o sustento de toda a família. Quando havia estações particularmente chuvosas com inundações, era ainda pior. No verão havia chuva de granizo e em uma única tarde, perdia-se tudo: vinho, tomate, batata, cereais, a colheita toda. O patrão chamava os camponeses e tentava convencê-los de que os prejuízos seriam divididos também entre eles. Afinal de contas, “Todos tinham que fazer sacrifícios!” Entretanto, quando a colheita era boa, o salário não aumentava.
Por esse motivo, estouravam
greves entre os camponeses com apoio das associações agrárias. As vacas deixavam
de ser ordenhadas por vários dias e o trigo apodrecia no campo. Os
trabalhadores dispensados, não tinham assistência social, eram expulsos das
fazendas e suas casas sem ter pra onde ir. Quando despedido o camponês e sua
família tinha que ir embora da fazenda, deixar os animais que nasceram lá e os
utensílios do patrão, e buscar trabalho em outra propriedade. Tudo o que tinham
cabia em uma carroça. Alguns acabavam indo para a cidade ou procuravam
trabalhos temporários para ganhar um salário miserável. Segundo Edmondo De Amicis, em seu livro Em Alto Mar, "os trabalhadores sazonais, mesmo com a ajuda da mulher e os filhos
pequenos, não conseguiam ganhar quinhentas liras por ano. Os debulhadores de
arroz do sul da Lombardia, ganhavam uma lira por dia, trabalhando sob sol
escaldante, na água lodosa."
Os Sarti, Tiozzo e Feltrin, membros da minha família eram
‘contadini’. Não eram proprietários
das terras. Aparentemente, os Feltrin eram agricultores sazonais e não tinham
residência fixa, mudava-se com frequência. Já a família Sarti, talvez fossem
moradores fixos e inquilinos em uma fazenda de Castelguglielmo.
Moradia:
No norte e nordeste da Itália, a maioria das casas
dos camponeses era feitas de pedra,
herança do tempo romano e eram coberta de telhas arredondadas. As portas e
janelas eram de madeira, mas não havia vidros e no inverno, o vento gelado
entrava pelas frestas. No andar térreo
ficava a cozinha, com uma porta que dava acesso à estrebaria. No segundo andar
havia os quartos, e o celeiro onde guardavam o feno, milho ou sorgo e trigo
para o consumo da família. Em alguns casos, no subsolo havia um porão que
faziam dele a adega onde guardavam o queijo e o vinho.
Geralmente havia um quarto para o casal e alguns
filhos menores e outro para o resto da família. Em alguns casos, dormiam todos
no mesmo cômodo. No quarto havia as camas, baús, armários para a roupa, e um
lavatório e um jarro com água que eram usados de manhã para lavar o rosto. O
banheiro era um cubículo construído na parte de fora da casa. Muitos preferiam
fazer suas necessidades ao ar livre, atrás de um arbusto, ou no estábulo junto
às vacas. Em algumas famílias, a cerimônia do banho acontecia aos sábados.
Colocavam uma banheira ou bacia de água em um cômodo da casa ou no estábulo e
os membros da família faziam fila para tomar banho. A água era trocada a cada
dois ou três banhos. Durante a semana,
eles apenas lavavam o rosto, as mãos e os pés. Ao lado do fogão sempre ficava
um caldeirão para aquecer a água, mas no verão, deixavam a água aquecer no sol,
do lado de fora da casa. Nos meses de julho e agosto, a dona de casa colocava
uma bacia cheia de água no centro do pátio ou no quintal para ser aquecida ao
sol; à noite, depois de um dia de trabalho, o marido ao voltar do campo, lavava
a sujeira do rosto e dos pés e para aliviar o cansaço.
Na cozinha, havia uma mesa, bancos ou cadeiras, um aparador para o pão e alimentos. Também havia potes de barro onde se guardava a água para beber e cozinhar. Em uma das paredes ficava a lareira que era usada como fogão sobre a qual se guardava os utensílios mais usados. Na parte de baixo da madeira, ficam penduradas as conchas, escumadeiras, garfos e colheres que eram usadas na preparação dos alimentos. Um pouco mais abaixo, havia um varão onde se penduravam as panelas pelas alças em ganchos. No chão, logo abaixo das panelas, faziam uma fogueira. Este era o fogão. Às vezes a pequena chaminé não dava conta e a casa se enchia de fumaça. Não havia sala de estar ou visitas, assim, a cozinha era o local onde a família passava a maior parte do tempo, ali jantavam, conversavam e rezavam o terço. Quando recebiam visitas, ficavam do lado de fora no verão, sob a sombra de uma árvore, no inverno se agrupavam nos estábulos junto aos animais. Na estribaria também podia haver um conjunto de tecelagem onde as moças e mulheres transformavam os fios de linho em tecido, ou os equipamentos que os homens usavam para trabalho de carpintaria.
Nas fazendas, longe da cidade, não havia água
encanada nem eletricidade. Para iluminação, usavam velas de cera ou lamparinas a
óleo de nós ou querosene. Tinham que estar atentos para não desperdiçar. A água
vinha de um poço que ficava perto da casa da fazenda ou de uma bica de água
corrente. No campo havia "i fopp",
as lagoas alimentadas pela água da chuva, de onde bebiam os animais e também
regavam a horta e jardim.
Do campo para a mesa
O Vêneto é uma região com vocação agrícola e foi bem
sucedido na renovação e na modernização dos seus métodos de trabalho. Há hoje uma
produção de qualidade com fortes laços com a indústria. Atualmente há ali
forte produção de queijo que inclui o asiago,
e embutidos, sobressaindo-se a sopressa
vicentina, salame com pouca gordura, e a luganega, linguiça fresca de carne suína. Quanto aos vinhos, produzem
os tintos Valpolicella e Amarone, e o espumante Prosecco. O Vêneto tem também
uma vigorosa produção agrícola, sendo o arroz, largamente produzido na região. Devido
a vigorosa produção agrícola, alguns dos mais tradicionais pratos da região do
Vêneto levam vegetais. Um dos seus ingredientes mais característicos é o arroz
sendo os pratos que levam arroz e o risotto
muito prestigiados em toda a região. Mas além do arroz, também utilizam muito o
feijão.
Por
volta de 1530 os portugueses e espanhóis levaram das Américas para a Europa a
batata, o milho e o feijão. Foi uma verdadeira revolução na dieta europeia. Logo
o feijão tornou um ingrediente de primeira necessidade na Itália e reforçou a
dieta da população por ser fácil de cultivar. Antigamente, no Vêneto, o
chamavam de fasioi, mas no italiano
padrão se diz fagiolo.
Um prato típico do Vêneto é a pasta e fagioli in brodo, um caldo que combina massa e feijão temperado com alho e salsinha. É especialmente apreciado no Vêneto durante o inverno muito frio. Trata-se de um prato nutritivo, rico em carboidratos e proteínas. Coziam a massa junto ao feijão, aproveitando todo o amido dos grãos dessa leguminosa e também acrescentam cotenna ou cotica, a pele de porco, rico em calorias e gordura, um ingrediente da cozinha camponesa, do tempo em que não se jogava nada fora. Alguns acrescentam a pancetta, a barriga do porco curada no sal, salgada, temperada e maturada por cerca de três meses e outros ingredientes como a cebola, cenoura e salsão. O resultado é uma sopa aromática e saborosa tão densa que a colher se mantém na posição vertical dentro da panela. Os italianos dizem: “da reggere il cucchiaio in piedi” . Acredita-se que a receita da pasta e fagioli in brodo originou-se na Idade Média e todos concordam que nasceu entre os camponeses. Trata-se de um prato econômico, mas rico em sabor e calorias. É importante lembrar que estas são receitas aprimoradas de pratos que os camponeses comiam quando havia boa produção de alimento no campo.
O leite tinha muita importância na dieta dos camponeses. Era normalmente reservado para crianças e doentes ou usado como ingrediente para cozinhar castanhas e legumes. A maior parte do leite era usada para se fazer manteiga e queijos para o consumo familiar ou como produto para ser vendido ou ser trocado por outros produtos.
O pão era artigo de luxo em algumas casas e era apenas preparado e assado em ocasiões especiais como aniversários. Geralmente era preto, feito com uma mistura de farinha de centeio, água e fermento. O fermento era obtido à partir de um pedaço de massa anterior esquecido em um canto da dispensa. As vezes misturavam batatas cozidas e amassadas que dava ao pão ar de frescura e permitia conservação prolongada. Depois de amassada, a massa descansava para crescer e em seguida os pães eram cozidos na lareira no final da noite, enterrados sob as brasas e cinzas ainda queimando. Depois de algumas horas, surgia um pão achatado e escuro, duro e nem sempre cozido, impregnado de cinzas. Depois de esfriar, era limpo com um pano de prato e depois colocado no armário. O número de pães assadas dependia do número de membros da família. Na hora de comer, temperavam com manteiga ou, em alguns casos, óleo de noz. O azeite de oliva, naqueles dias, era uma raridade a mesa dos camponeses por ser muito caro.
Mas na segunda metade do século XIX, eram poucos os camponeses que tinham a sorte de chegar em casa a noite e poder comer sopa com massa e feijão, batata, um pedaço de queijo e ter soro de leite para beber. Edmondo De Amicis, ao descrever a dieta dos camponeses, nos ajuda a entender como era deficiente: “Depois de um dia de trabalho não encontrava à mesa nada mais do que uma sopa de cebola, e que à noite acordava com fome, mas não ousava comer para não tirar o pão dos filhos, que já o tinham escasso (...)” De Amicis falava dos soldados que lutaram na guerra pela unificação e dos camponeses que perdiam as terras por não poderem pagar os pesados impostos. Segundo ele alguns camponeses da zona de Mantova (Mântua, Lombardia), nos meses frios atravessavam o rio Pó para colher tuberosas pretas (tubérculos como a beterraba) para se sustentarem e tentar sobreviver durante o inverno. Mais ao sul, os Calabreses viviam de um pão de lentilhas silvestres, semelhante a uma mistura de serragem de lenha e lama, e nos anos ruins comiam ervas rasteiras dos campos, cozidas sem sal, ou devoram as pontas cruas das leguminosas da forragem. Outros historiadores dizem que se podia morrer de inanição e a única alimentação da classe rural não passava de polenta. Voltando ao Vêneto, o preço da carne era absurdamente caro para eles, assim como do pão de farinha de trigo.
Podemos entender isso ao fazermos uma comparação do salário
de um camponês e o preço de alguns itens em 1900. Os valores são em Liras
italianas (₤), que vigorou na Itália entre 1861 e 2002. Por exemplo, um trabalhador
na fábrica ganhava ₤1,5 ÷ 2 por dia e uma mulher ₤0,80 ÷ 1 por dia, para dias
úteis de 11 ÷ 12 horas e 6 dias por semana. Os salários de um camponês giravam
em torno de ₤0,60 por dia. O pão custava ₤0,45/kg, macarrão ₤0,56/kg, farinha
milho ₤0,25/kg, farinha de trigo ₤0,43/kg, carne ₤1,30/kg, leite ₤0,26/1L, açúcar
₤1,54/kg, 10 cigarros ₤18, um jornal ₤0,05. (fonte)
Ingredientes como óleo e sal precisavam ser comprados
no mercado. Quando sobrava algum dinheiro, compravam laringas scopeton, sardinhas salgadas exportadas da Noruega. Mas a
grande maioria do que consumiam era cultivada e produzida por eles mesmos. Os
camponeses aproveitavam qualquer coisa que encontravam no campo para
complementar a dieta como rabanetes selvagens e com sorte, encontravam
cogumelos. Na região das montanhas era comum comerem o cráuti, uma espécie de repolho macerado e guardado com sal em
vasilhame de madeira, semelhante ao chucrute. Comiam também o radicchio rosso, chicória vermelha amarga
que era temperado com vinagre forte.
Mas durante o inverno, com muita neve, não havia verduras e legumes. Viviam da comida armazenada, especialmente conservas, marmeladas, geleia de amoras e nozes com polenta. Tudo precisava ser racionado e usado com parcimônia. A nona controlava as porções de comida para o marido, filhos, noras e os netos. Ninguém ousava contestar! Geralmente tinham apenas duas refeições por dia, uma às nove horas da manhã e a outra às quatro horas da tarde. Um pai, mesmo esgotado e faminto depois de trabalhar pesado no campo, ainda dava parte de sua comida ao filho.
Em uma cena do filme Novecento, um camponês entra em
uma casa minúscula construída com paredes de pedra e coberta de feno. Ele tem
um semblante triste e está com o chapéu nas mãos. Dentro do chapéu há quatro
pedaços de polenta frita que ele joga sobre a mesa. Um casal de velhos
desdentados e algumas crianças apreçam-se em pegar os pedaços e começam a
comer. Todos muito magros! Ele olha para cima e vê um único peixe pendurado por
uma linha amarrado no teto, talvez secando para ser comido mais tarde. O garoto
reclama: -“Papai. Não tem mais polenta!”,
e a garota diz: - “Papai. Ainda estou com
fome!” - E o pai responde: - “E eu
farei vocês esquecerem a fome.” - E começa a tocar uma gaita para
distraí-los.
A base da dieta daqueles camponeses era a polenta. Eram fatias de polenta, duras e sem gosto, que eles encostavam na sardinha antes de comer pra sentir o gosto do peixe. Isso se chamava ‘pociare’. Não comiam o peixe, era só para sentir o gosto dele na polenta e conseguir engolir. Hoje o ato de ‘pociare’ é comum quando se termina de comer macarrão com molho de tomate ou qualquer outro prato com molho. Passa-se um pedaço de pão no molho que sobrou no prato antes de levar à boca. 2 Mas quando se fala aqui em polenta, nem sempre se trata da polenta como nós brasileiros a conhecemos, feita com fubá ou farinha de milho. No Vêneto a polenta era também feita com a farinha do sorgo turco e era para eles o ‘pão nosso de cada dia’ que pediam na oração do Pai Nosso durante o terço.
Doença e morte
As mulheres grávidas tinham os filhos em casa no quarto principal ou no estábulo com a ajuda de uma ‘levatrice comunale’, parteira municipal, e outras mulheres e não em hospitais como acontece hoje. Desde o tempo dos Gregos e Romanos, o parto acontecia em casa com a ajuda de outras mulheres casadas que já eram mães e que tinham experiência. Algumas dessas mulheres, mais experientes, se tornaram parteiras profissionais. A tarefa da parteira ia além de ajudar o bebê a nascer, ela também dava orientações às mães sobre o descanso e a dieta a seguir. Depois de nascer, a criança era enrolada do pescoço aos pés, e a cabeça era coberta com uma touca de algodão cuidadosamente trabalhada. Algumas mulheres morriam no parto visto que a cesariana era um procedimento raro e perigoso. 3
Entre os séculos XVII e XIX a pelagra golpeou, sobretudo a população da zona setentrional (norte) da Itália, particularmente a mais pobre do Vêneto oriental (leste) e do Friuli. Entre 1804 e 1805, o governo austríaco, que dominava o Vêneto, conduziu uma pesquisa sobre a doença nas províncias de Treviso e Padova e concluíram que a pelagra não era contagiosa nem hereditária, mas era consequência do abuso de alimento vegetal, particularmente do ‘granturco’ (sorgo turco), planta de onde provinda a farinha para se fazer polenta. Em 1881 o governo pôs em prática programas para neutralizar a doença. O interessante é que as populações que consumiam polenta com leite, em particular em algumas zonas da Lombardia, não eram afetadas por esta doença. Mais tarde descobriu-se que o leite contém proteína niacina.
Preservar os alimentos era um problema muito sério. A
primeira geladeira doméstica surgiu em 1913. Até então, os alimentos perecíveis
precisavam ser consumidos no mesmo dia ou no máximo, nos dois dias seguintes.
Uma maneira de conservar alimentos era coloca-los no sal, enterrá-los na
gordura, secar ou defumar. Foram os métodos usados por milhares de anos. O
problema é que devido à má preservação dos alimentos, os casos de teníase,
provocado pela tênia encontrada na carne de porco, ou vermes intestinais eram
frequentes. Quase cem anos depois, meu avô, tinha o costume de guardar linguiça
de porco em latas de banha, na fazenda onde morava em São Paulo.
As doenças comuns eram tosse, reumatismo, queimaduras,
picadas de abelhas, dor de dente, dor de ouvido, dor de cabeça, constipação
infantil, dor de abdômen, torcicolos e vermes intestinais. Quando alguém ficava enfermo,
não faltavam parentes ou vizinhos com conselhos de como resolver o problema.
Recorria-se aos remédios caseiros como unguentos feitos com manteiga e açúcar
ou cebola, fatias de batatas, claras de ovos batidas em neve, gotas de leite
quente no ouvido, mastigar salsinha, e chás. Se o paciente piorasse chamavam o
pároco, um professor, idosos ou pessoas com habilidades especiais que conheciam
as propriedades das ervas. Em caso de deslocamento ou fratura, resolviam em
casa mesmo. Em casos mais graves, recorreriam ao poder curador da oração aos
vários santos que acreditavam ser milagrosos. Raramente tinham a assistência de
um médico que para eles, só queriam pegar o dinheiro que eles não tinham. Só havia
hospitais em cidades grandes o que exigia deslocamento, por isso era comum
chamar o médico em casa que cobrava caro pela visita e consulta.
O mesmo se refere aos dentistas. Na Idade Média e ao
longo do século XIX, a odontologia não era uma profissão em si. Muitas vezes,
os tratamentos eram realizados por barbeiros e monges e os tratamentos eram
feitos sem anestesia. A partir de 1846 os dentistas profissionais começaram a
usar éter como anestésico e somente a partir de 1901 teve início o uso da
procaína (novocaina) como anestésico local. Os procedimentos mais comuns e mais
baratos eram a extração dentária, por isso não era raro ver uma pessoa ainda
jovem sorrir sem alguns ou vários dentes na boca.
Em 1807, quando a Itália foi anexada pelo Império
Napoleônico Francês, muitas ordens religiosas criaram Congregações de Caridade,
instituições não religiosas que davam assistência médica aos camponeses. Entre 1825-1836 a Itália foi atormentada pela
epidemia de cólera. Nesta época também teve início a vacinação entre a
população. As igrejas deixaram de ser locais de sepultamento e os cemitérios
passaram a ser feitos nos subúrbios das cidades.
Por ocasião do luto, era costume costurarem uma tira de tecido preto na lapela do paletó, ou usavam uma pulseira preta no braço. As mulheres se vestiam de roupas pretas. O luto podia durara até três anos. Era um momento dos parentes, vizinhos e amigos mostrarem solidariedade e assim participavam no luto da família. Quase todos compareciam ao funeral. Nas semanas e meses seguintes, as famílias em luto tinham o apoio da comunidade. Os mais jovens, ajudavam os mais velhos nos trabalhos mais pesados do campo e muitas vezes, no domingo de manhã, os jovens cortavam feno para viúvas com filhos pequenos.
Inverno
Os meses de julho e agosto são os mais quentes na
Itália. Durante o verão, os camponeses trabalhavam dobrado para se preparar
para o inverno. A primavera e o outono têm temperaturas frias, mas suportáveis,
entretanto no inverno elas chegam a ser abaixo de zero. Os camponeses tinha que
aproveitar o tempo bom e uma das grandes preocupações para a população era
armazenar lenha pra o inverno que era muito disputada pelos vizinhos. A lenha
era usada no fogão para cozinhar e também para aquecer o interior das casas.
Para economizar lenha, os membros da família ficavam todos juntos na cozinha,
em volta do fogão que servia de lareira. Caso terminasse a lenha ou o inverno
se prolongasse, apelavam para o esterco de vaca. Como não havia aquecimento nos
quartos, à noite, cobriam-se com cobertas de malha de lã e um tipo de edredom
recheados com penas. Alguns enchiam grandes sacos de linho com folhas de fágio,
uma espécie de arvore, e com eles cobriam as camas dos rapazes, moças e
crianças, pois não havia cobertas ou cobertores para todos.
Passavam a maior parte do dia dentro de casa para se
proteger do frio e saiam apenas para o estritamente necessário. Os animais
ficam protegidos no estábulo. O sol nasce aproximadamente às 8 da manhã e se
põe as 16h30, por isso os dias eram mais curtos e passavam rápidos, enquanto as
noites eram muito longas. Às 16 horas já estavam jantando. Este contato
aproximado somado a falta de ventilação e higienização facilitava o contágio de
doenças causadas por vírus, mas eram totalmente ignoradas por eles.
O que vestir durante o inverno? Era a nona que geralmente ordenava a troca de roupas. Nas áreas montanhosas mais geladas, os homens vestiam ceroulas longas até o tornozelo e sobre elas calças mezalana [meia-lâ]. Os idosos atavam no peito atou uma peturina, uma malha de lã pura, e sobre ela colocavam a camisa e depois um colete e mais uma blusa de lã. Ainda tinham uma capa de lã que só era usada quando saiam para o lado de fora de casa. Nas montanhas, muitos passavam o inverno todo com a mesma roupa que só era trocada na primavera. Com o tempo gelado, roupas costuradas no corpo e falta de aquecimento, não era costume tomarem banho durante o inverno e vestindo aquela armadura contra o frio, eles tinham pouca mobilidade.
As roupas eram geralmente feitas de cânhamo e algodão ou pele de animais, as roupas de lã eram raras. No dia a dia era comum o uso de ‘zoccoli’ (tamancos) na parte norte da Itália. Os sapatos, velhos e rústicos, marcados pelos anos de uso, só eram calçados quando iam à cidade. Quando rasgavam ou quebravam, concertavam solas e saltos em casa mesmo. Nas festas, os homens sempre usavam um chapéu de pano ou feltro com aba decorado com uma fita e um laço ao redor do cone. Por cima da camisa, usavam o colete abotoado e um lenço amarrado ao redor do pescoço ou da gola da camisa, também usavam paletó. Para se proteger do frio, usavam um manto negro e pesado, semelhante a uma capa. O terno era usado e depois guardado sem lavar ou passar. Com o tempo ficava amarrotado e com aspecto terrível!
Levando tudo em consideração, seria muito fácil julgá-los como avarentos (mão de vaca e pão duro), mas conhecendo sua história, fica mais fácil entender seu comportamento como grupo, comportamento esse que transmitiram para as futuras gerações.
Tempo de rir
Quando se cansavam, paravam para ouvir os mais velhos
contar histórias de ogros, lobos, bruxas e castelos de fadas. Contavam também
historiam engraçadas e divertidas. O ambiente era aquecido pela lareira, e
também pela respiração das vacas. O ar viciado e úmido com forte cheiro de
excremento e mofo não perturbava ninguém, já acostumados a eles. Então, em um determinado
momento, alguém dava um sinal e, em alguns minutos, todos voltavam para suas
casas. Muitas crianças dormiam ali mesmo, no colo de alguém mais velho, e eram
colocadas na cama sem acordar. Mais uma vez, essa proximidade com os animais
eram um perigo para a saúde, totalmente ignorado pelos camponeses.
No Filme 1900 (Novecento) há cenas de crianças se
divertindo na fazenda, correndo, pegando rãs no rio, se escondendo no feno.
Todos misturados. Em outra cena, vemos os trabalhadores comendo, todos juntos
em uma grande mesa. As mulheres colocam a comida no centro da mesa, de onde, os
homens sentados, se servem com suas colheres e enchem os pratos. Enquanto
alguns comem, algumas mulheres tiram piolho da cabeça dos meninos e brigam com
outras por causa das traquinagens dos filhos. O corcunda tenta filosofar,
recebe uma polentada na cara e todos desabam a rir. Deboche típico dos
italianos! No domingo, dia de descanso, sob a sombra das árvores, fazem piquenique
ao lado de um rio. Alguns homens tocam gaitas e os jovens dançam. Comem melancia
e bebem vinho tinto. Na vila há um teatro de marionetes cujas peças falam sobre
o socialismo e a revolução. Essas peças era uma forma comum de entretenimento,
mas também doutrinar e educar as crianças.
Os pequenos tinham pouco tempo para se divertir, mas sempre achavam um jeito de brincar. As meninas tinham bonecas feitas de pano recheadas com serragem. Sendo pobres, faziam seus próprios jogos com os materiais disponíveis e a imaginação. Os jogos eram disputados em espaços ao ar livre. Os jogos mais frequentes eram pega-pega, o jogo de esconde-esconde, brincar de rodas, pular cavalinho, entre outros.
No domingo, alguns iam assistir a missa na igreja, os que moravam longe da igreja, ainda trabalhavam em casa na parte da manhã. Depois do almoço, passavam tempo conversando, bebericando e cantando. As crianças, sentadas no chão escutavam os cantos executados pelos adultos tentando imitá-los e acompanhá-los. As mulheres e moças conversavam na cozinha e enquanto lavavam a louça, trocavam novidades, comentavam os encontros e falavam da vida alheia. Contavam as novidades sobre os conhecidos e parentes vistos pela manhã na igreja, ou na feira. Os mais velhos tiravam um cochilo, e os jovens procuravam uma festa ou quermesse pra ir. As festas eram geralmente relacionadas a algum santo como festa de Santo Antônio. Era nessas festas que alguns rapazes tentavam subir na cuccagna (pau de cebo) para pegar o difícil prêmio. Alguns domingos eram dias de festas. A rotina mudava com os almoços de batizado, e com as festas de casamento.
Casamento e nascimento dos filhos
O casamento sempre era um evento de grande importância para os nubentes e para os parentes e amigos que participaram com entusiasmo neste evento. Geralmente, o dia do casamento se restringia a fronteira doméstica, com os parentes mais próximos. Eles seguiam alguns costumes e rituais provenientes de várias gerações anteriores.
Durante o namoro, o casal de namorados geralmente se encontravam à noite após o jantar em frente à casa ou nos estábulos, mas ainda sempre perto dos pais, parentes e conhecidos. Somente aos domingos tinham mais liberdade, quando iam a missa, pois podiam conversar em frente à igreja, antes ou depois da missa. Quando um rapaz e uma moça "conversavam", isso significava que havia sérias intenções entre eles. O pedido de casamento era feito pelo pai do noivo. Os pais iam à casa da futura nora para pedir oficialmente sua mão. Aquela era também a ocasião para definir a data do casamento, e combinar as várias tarefas das duas famílias ou recém-casados, como a preparação do enxoval.
Quando a menina ficava mocinha, por volta dos treze
anos, com a ajuda da mãe, começava a fazer o enxoval que geralmente incluía
dois lençóis, duas fronhas e algumas toalhas de mesa e banho. Isso era
embrulhado em panos e guardadas em baú, providenciado pelo pai da moça.
Enquanto isso, o noivo começava a fazer os móveis da casa. Trabalhava sozinho,
ou com ajuda do pai ou irmãos à noite ou no domingo. Não precisavam de muitas
coisas, pois na maioria dos casos, a noiva tinha que “andare in casa” ou seja,
coabitar com a família do noivo, onde a sogra comandava tudo. Por isso era comum haver enormes famílias
habitando sob o mesmo teto, o nono, a nona, pai, mãe, cunhados, tios e primos.
No dia do casamento a noiva usava um vestido simples. Aparentemente, o costume de usar vestido branco começou apenas após a Segunda Guerra Mundial. Às vezes ela usava um véu na cabeça. O noivo vestia um terno elegante, geralmente escuro. Depois do casamento, esse terno era guardado para ser usado em ocasiões especiais. Tornava-se a lendária roupa de festa. Desde 1865, com a aprovação do novo Código Civil, os católicos passam a se casar duas vezes, na prefeitura e na igreja. Na igreja, para não viver em pecado mortal. No civil, para o bem dos filhos, que de outra forma não seriam reconhecidos como legítimos pelo poder leigo e também para evitar o perigo da poligamia. Mesmo depois do casamento civil, os noivos retornavam às casas de seus respectivos pais; sem coabitação até acontecer o casamento religioso.
Na manhã do casamento na igreja, o noivo, acompanhado
por seus pais ia até à casa da noiva. De lá, seguiam para à Igreja em uma procissão
na seguinte ordem: noiva e pai, noivo e mãe, mãe da noiva e pai do noivo,
testemunhas, parentes e amigos aos pares. Seguiam em charretes ou a pé. Após a
cerimônia de casamento na igreja, a noiva era acompanhada em casa pelo noivo. Seguia-se
outra procissão até a casa da sogra. Lá a sogra dava uma concha à nora como
sinal de boas-vindas. Não havia lua de mel naquela época e o costume de dar
presentes aos noivos só se espalhou por volta de 1930. Antes, se fosse dado
algum presente, eles eram geralmente ovos ou bolos. Se alguém tivesse mais
posses, daria uma galinha que acabava indo se juntar as galinhas da sogra.
Não demorava muito, começavam as cobranças para o casal ter filhos. Além das crianças serem consideradas uma bênção de Deus, significava mais braços para o trabalho agrícola. Geralmente não demoravam muito para ser anunciada a gravidez. Depois da calorosa demonstração de alegria, começavam a especulação: menino ou menina? Un figlio maschio (um filho macho) era mais desejado porque significava mão-de-obra preciosa no campo, já uma menina significava prejuízo, pois a família teria gasto preparando um enxoval para seu casamento e também perderiam a força de trabalho, já que ela passava para a família do noivo.
As mulheres grávidas não eram poupadas e geralmente
continuavam suas ocupações diárias até o trabalho de parto. Alguns dias depois
do parto, já voltava a cuidar do trabalho doméstico e em alguns casos até a
trabalhar nos campos. Logo depois do nascimento, geralmente dentro de uma
semana, faziam o batismo, pois tinham medo que o bebe morresse pagão. Em alguns
casos, o batismo era administrado em casa, imediatamente após o nascimento e
depois completado com a cerimônia da igreja.
Além da primeira parte do filme Novecento (1900), assistir a outro filme italiano A Arvore dos Tamancos (1978) é fazer uma viagem no túnel do tempo e partilhar a vida e a rotina dos camponeses no norte da Itália. O filme trata da história de um casal de camponeses, que luta para não transferir ao pequeno filho o legado de suas vidas de trabalho no campo, duro e incessante e da falta de acesso ao conhecimento. Batistini, o pai do menino, é chamado à sacristia onde assume perante Deus o compromisso de enviar seu filho de sete anos a escola. Para isso, é preciso tirá-lo do trabalho do campo, algo que preocupa o pai. Afinal de contas “o que vão dizer quando virem o filho de um camponês indo à escola?”. Na grande propriedade tudo pertence ao senhoril, a terra, as casas, os utensílios e as árvores. Ao cortar uma árvore escondido para fazer um par de tamancos para o filho, cujos pares velhos quebraram, Batistini é descoberto pelo senhoril e é expulso da fazenda. Mas o filme vai além dessa história e mostra incidentes em torno do dia a dia de outras famílias de camponeses na mesma fazenda. Chama atenção o fascínio da neta pelo avô que o ajuda a plantar tomates no final do inverno em um cantinho de terra, que será vendido na cidade. O trabalho da lavadeira de roupas à beira do rio, que também é parteira, a festa para matarem um porco, a tensão de um camponês ao encontrar uma moeda em uma festa na cidade e o trabalho para escondê-la, a dificuldade em lidar com os animais, o filó, o namoro e casamento de um jovem casal. As rezas e orações em diferentes momentos, a presença constante do pároco e sua influencia na vida dos camponeses, a força da religião que permeia a todos e alimenta suas almas como no milagre obtido por uma viúva que cura sua vaca com água benta. Às vezes esquecemos as histórias das famílias e prestamos atenção nas banalidades do cotidiano como a terra, a natureza, as plantações, a neve no inverno, o renascimento com a chegada da primavera, o rio e o transporte de cargas e pessoas no barco.
Volto agora à pergunta feita no inicio deste capítulo: Como era viver no Vêneto na primeira metade do século XIX? Sem relatos escrito ou oral dos meus antepassados, me resta especular sobre a vida deles como grupo. Eles viviam em núcleos familiares, trabalhavam no campo, e certamente meu bisavô Giacomo Sarti já o fazia desde os dez anos de idade. Eram gente simples que trabalhavam muito e passaram por dificuldades relacionadas à economia, saúde e temperatura. Posso imaginá-los trabalhando nas plantações, cuidando dos animais, recolhendo lenha para estocar, e as mulheres ocupadas nas suas atividades domesticas e as crianças sempre presentes em cada aspecto dessa rotina. Os visualizo rezando o terço, assistindo missas, casando os filhos, batizando os netos e enterrando seus mortos. Também os vejo sentados e espremidos no estábulo ouvindo histórias dos mais velhos no inverno, mas também o grupo de parentes e vizinhos sentados sob a sombra de uma arvore, em um domingo de tempo agradável, depois do almoço, rindo, conversando, cantando enquanto as crianças esgotam suas energias correndo, brincando e até brigando entre si. Nesses momentos conseguiam esquecer a miséria, a fome, a doença e a morte que os cercava diariamente, os governantes, os impostos pesados e a falta de perspectiva de uma vida melhor, especialmente para os mais jovens.
Mas voltando aos meus antepassados, como não dá para
tapar o sol com a peneira, um dia tiveram que encarar a vida de frente e foi
assim que decidiram que deixariam tudo para trás para começar uma nova vida em
um lugar totalmente desconhecido chamado Brasil.
Referências:
- Novecento é um filme ítalo-francês de 1976. Trata-se de um drama dirigido por Bernardo Bertolucci. A fotografia é de Vittorio Storato e a trilha sonora de Ennio Morricone. Foi filmado em Emília. As cenas retratram a maneira como os camponeses viviam no final do século XIX e o inicio do século XX. Mostra a exploração das classes superiores e a luta diária para se manterem vivos numa Itália empobrecida.
- Pociare - "Uno scrigno di gioie culinarie alla Bassona" - Recensione di Trattoria il Borgo Vêneto - No site da Tripadvisor: " ... le pappardelle si uniscono alla carne d'anatra tagliata al coltello, e a una fetta di pane al profumo d'arancia, pane che servirá per "porciare". https://www.tripadvisor.it
- Segundo a tradição a palavra cesariana deriva da forma como o imperador Júlio César nasceu em 100 a.C. Segundo João Malalas, um cronista bizantino, a mãe dele morreu no nono mês de gravidez, e sua barriga foi cortada e ele sobreviveu. Seu nome, César, derivaria da palavra latina 'caedo', que significa cortar. Embora há evidências de que a cesariana como procedimento de parto já existia antes de 100 a.C.
- A Arvore dos Tamancos (1978) L'albero degli zoccoli é um filme ítalo-francês dirigido por Ermanno Olmi. O filme retrata as dificuldades vividas por cinco famílias de camponeses do norte da Itália, no final do século XIX. Como forma narrativa, no roteiro também assinado por Olmi, a história apresenta fragmentos dessas famílias, formando, ao final, um grande painel de como era a vida dos trabalhadores rurais no final do século XIX. Quando um camponês corta escondido uma árvore para fazer um par de tamancos para o seu filho que não tem sapatos para ir a escola. O elenco foi formado por camponeses reais da província de Bérgamo, Itália. É um filme que examina com detalhes os gestos das pessoas. Usei algumas fotos do filme para ilustrar o texto. O filme está disponível no Youtube com legendas em português. https://www.youtube.com/watch?v=hTWhPfUmn1k&t=9177s
- Come si viveva una volta - TRATTI DI VITA QUOTIDIANA NEL 1900-1905 AL COINDO E LAIETTO
- Consiglio Regionale Del Veneto – Perfil histórico – Pré-História (primeiro parágrafo) http://www.consiglioveneto.it/crvportal/pageContainer.jsp?n=100&p=105&c=8&e=135&t=0
- Fra terra e acqua. L’azienda risicola di una famiglia veneziana nel delta - https://books.google.com.br/books?aree+braccianti+padana p. 368
- http://www.cordola.it/cercando-le-nostre-radici/come-si-viveva-una-volta/
- https://library.uab.edu/locations/reynolds/collections/regional-history/pellagra/history
- Itacir, Arlindo - Polenta e Liberdade pp 67, 192
- Livro Sabores da Itália em PDF – Vêneto p 94 com textos de J.A. DIAS LOPES e MASSIMO FERRari, disponível no site: http://www.saboresdaitalia.com.br/
- O povo Vêneto – A vida dos camponeses (em italiano) - https://popoloveneto900.weebly.com/vita-dei-contadini.html
- Pelagra - https://it.wikipedia.org/wiki/Pellagra
- Sapiens – Uma breve história da humanidade / Yuval Noah Harari; tradução Janaína Marcoantonio. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2018. [Tradução de Sapiens – A Brief History of Humankind]
- Sorgo - https://www.macrolibrarsi.it/speciali/cos-e-il-sorgo.php
- Sorgo e milho – a diferença entre os dois - https://books.google.com.br/books - differenza+tra+sorgho+e+mais
- Sorgo e milho - https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/13242210/sorgo-e-rico-em-nutrientes-e-antioxidantes-aponta-pesquisa
- Unificação italiana - https://www.todamateria.com.br/unificacao-italiana/
- Unificação italiana – Idade Moderna - https://www.historiadomundo.com.br/idade-moderna/unificacao-italiana.htm
- Ville residenziali nell'Itália tardoantica - https://books.google.com.br/books? interno+di+una+villa+italiana
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