Travessia é a ação ou efeito de atravessar
uma região, um continente, um mar, ou o caminho
percorrido pela embarcação em seu deslocamento entre dois pontos da superfície
da terra. A travessia é um dos pontos mais importantes de uma história
real ou fictícia, pois é nela que ocorre a transformação. Queria entender como
foi a travessia dos membros da minha família, incluindo a viagem até o Porto, o
embarque no navio, o tempo gasto na viagem, como eram acomodados no navio, o
que faziam durante a viagem, os acontecimentos em volta deles, as expectativas criadas
e finalmente o desembarque. Entretanto, meus avós nunca falaram sobre a viagem de seus pais para o
Brasil. Lembro que meus pais e meus tios nem mesmo sabiam de que província
italiana eles tinham vindo. Por isso, recorri a extenso material como livros, artigos e blogs que
detalhasse diferentes viagens de emigrantes desde a Itália até o Brasil no
período em que nossa família emigrou. Foram descobertas interessantes! Muitos
foram escritos baseados em relatos orais de antenatos, mas também no relato de testemunhas oculares.
Um dos livros que li foi o romance jornalístico Sull’Oceano de Edmondo De Amicis. Trata-se de um relato inteiramente dedicado a travessia do Oceano Atlântico desde o porto de Gênova, Itália até Montevidéu, Uruguai. A travessia foi realizada pelo próprio escritor em 1884 em um vapor durante qual, teve contato direto com os emigrantes da terceira classe e pode observá-los atentamente. A leitura nos leva para dentro do vapor, junto aos setenta passageiros da primeira e segunda classe, bem como dos mil e seiscentos emigrantes italianos viajando na terceira que iam para a Argentina.
Obviamente, cada viagem era única com diferentes personagens e seus próprios acontecimentos e seria ingênuo e precipitado tirar conclusões baseadas na leitura de apenas um livro, mas depois de ler outros materiais e compará-los, verifiquei que havia vários pontos em comum. Por este motivo, farei uma descrição de como eram geralmente as travessias feitas naquela época.
Antes do
embarque:
A maioria dos
emigrantes italianos partiam dos portos de Nápoles e Gênova. A viagem até o
porto era normalmente feita de trem, mas alguns emigrantes, por não terem
dinheiro para a passagem, iam sobre animais e até mesmo caminhando. Ao chegarem
a Gênova, os camponeses, habituados a vida no campo, deviam sentir-se
atordoados na estação barulhenta, onde multidões de pessoas gritavam, chamavam
e blasfemavam. Era uma mistura de viajantes chegando, outros partindo, onde uns
se abraçavam recebendo ou se despedindo de familiares.
A próxima etapa era encontrar um lugar para ficar
enquanto esperavam pelo embarque. Algumas poucas famílias iam para hospedarias,
mas muitas delas acampavam debaixo de arvores. Estavam assim, à mercê das
intempéries, dos ladrões que se aproveitavam da situação de vulnerabilidade
deles. Com sorte conseguiam uma vaga em asilos onde eram recebidos
gratuitamente com um prato de sopa diário, mas dormiam sobre suas próprias
roupas, em salas comunitárias. De
Amicis ao comparar os emigrantes alemães que partiam de Bremen, cidade
portuária na foz do rio Weser, informa que aqueles tinham comida, abrigo ou
banheiro para se recuperar da viagem terrestre, enquanto os italianos passavam
uma ou duas noites ao ar livre, agachados esperando o embarque, alimentavam-se
de frutas ruins. Alguns poucos que tinham algum dinheiro faziam verdadeiras
comilanças nas tavernas.
A espera durava em média dois dias, mas quando havia algum problema que causasse atraso na partida, tinham que ficar aguardando algumas semanas em Gênova. Alguns emigrantes encontravam trabalho no porto descarregando navios ou executando pequenos biscates. Com o dinheiro compravam alimento para todos, mas a noite, eles dormiam nas calçadas. Outros recorriam a esmolas e caridade.
Antes
de embarcarem, ainda no porto, precisariam passar pelo serviço de
Inspetoria Sanitária do Estado, para averiguar se não havia pessoas portadoras
de doenças infectocontagiosas. Logo em seguida, o agente portuário da empresa
conduzia os passageiros até o navio. O
agente da delegacia examinava os passaportes e a multidão de homens, mulheres,
crianças e velhos subiam a ponte carregando bolsas, malas, colchões, cobertores
e volumosos pacotes, às vezes entre os dentes. A procissão era ocasionalmente interrompida
para dar passagem a um rebanho de bois e carneiros.
Ao embarcarem, passavam por mais uma escrivaninha onde os agentes verificavam as passagens, conferiam passaportes e indicavam os aposentos. Neste momento o chefe da família recebia o cartão de rancho, onde seriam anotados os nomes dos membros do grupo. O chefe do grupo seria o responsável para pegar à porção de comida de cada membro do grupo. Com o cartão controlavam as porções das refeições diárias durante a viagem.
Então eram conduzidos aos aposentos. A vasta maioria dos camponeses viajava na terceira classe, principalmente aqueles que tinham a passagem paga pelo governo brasileiro. Normalmente as famílias eram separadas, os homens iam para um lado, as mulheres e crianças para outro, onde ficavam seus dormitórios, todos na terceira classe. Havia comissários encarregado de separar os homens das mulheres, e vigiar para que nenhuma mulher saísse dos dormitórios durante a noite. Algumas famílias tinham sorte e todos os membros ficavam juntos em um camarote onde havia beliches de três andares. Debaixo das camas havia espaço onde podiam guardar bagagens. Os colchões das camas eram de capim. Juntos eles podiam rezar o terço e fazer as refeições. Famílias menores se viam obrigadas a dividir o camarote com pessoas que não conheciam.
Muitos navios vinham de Nápoles, e aportavam em Gênova
já com emigrantes do sul. O grande temor de um camponês do era ter que dividir
o camarote com emigrantes de Nápoles. Esta convivência imposta implicava em
conviver, por quase um mês, com mais crianças às vezes gripadas, com nariz
escorrendo, cabelos empastados, roupa suja e mal cheirosa. As mulheres
napolitanas, região bem mais quente ao sul da Itália, usavam roupas mais leves.
A cada movimento de agachar-se, espiavam-se seus seios. Os homens fumavam
cachimbos dentro dos camarotes e a comunicação era difícil. Além de falarem
dialetos diferentes, os vênetos eram mais quietos e reservados, enquanto os
napolitanos eram, em geral, falantes ruidosos e escandalosos.
Alguns amigos e familiares subiam ao navio para se
despedir, mas logo eram admoestados a descerem a rampa para o navio partir.
Ouvia-se apitos e em seguida o navio começava a se mover. Os passageiros
espremiam-se no convés para dar adeus aos parentes. No porto, abanavam lenços e
chapéus. Dentro do navio, ouvia-se o choro e o lamento de despedida enquanto
tremulavam lenços e pedaços de pano. Ao passo que o navio se afastava
lentamente do porto, a cidade de Gênova diminuía no horizonte. Para a maioria
deles, talvez todos, seria a última vez que veriam a Itália.
A maioria deles era marinheiro de primeira viagem, por isso logo começaram as reclamações e enjoos. Aqueles emigrantes, que tinham feito verdadeiras comilanças nas tavernas, eram os que agora expulsavam a comida do estomago em jarros de vômito. Aqueles, acometidos de enjoo, que jaziam estendidos nos bancos, pareciam estar doentes ou mortos, com os rostos sujos e os cabelos desalinhados, em meio a uma grande bagunça de cobertores e trapos de pano.
O
navio
Havia também a lavanderia a vapor e o matadouro, as cabines dos oficiais, maquinistas, médicos, cozinheiros, fornos, cozinha, banheiros, confeitaria, a pequena caldeira, os depósitos de víveres e de roupa de cama e mesa, os faróis e os correios. A varanda em grande parte ocupada pelos passageiros da terceira classe, o reservatório de água doce e bacias de água salgada. E a proa com os dormitórios dos marinheiros, a máquina de fazer gelo e o hospital. Na parte interior do navio, o que não era visível: depósitos de carvão, grandes volumes de água doce, provisões de viveres, depósitos de cabos, velas, roldanas, porão de bagagens, e vários corredores baixos e estreitos.
A
Travessia
Depois de partir de Gênova, o navio seguia para o Golfo do Leão, (Golfe du Lion em francês), uma pequena parte do mar Mediterrâneo situada em face do litoral arenoso das regiões francesas do Languedoc-Roussillon e da Provence, dos Pirenéus até Toulon. Alguns ainda atracariam no porto de Marselha, França e só então seguiria em direção ao estreito de Gibraltar. Geralmente os três primeiros dias eram calmos e tranquilos. A neblina na travessia do estreito de Gibraltar provocava congestionamento de navios enormes que apitavam continuamente para avisar do perigo e evitar um bater no outro e causar um naufrágio o que causava angústia e apreensão. Mas tão logo atravessava aquele portal, o navio finalmente alcançava o oceano Atlântico, pegava maior velocidade e seguia em direção a América do Sul. Os portos de destino eram Rio de Janeiro, ou Santos, Montevidéu e Buenos Aires.
Os navios normalmente saiam com
o número permitido de passageiros de Gênova, mas quando parava em outros
portos, como Marselha, embarcavam mais passageiros do que a quantidade de
lugares ainda disponíveis. Enfiavam viajantes sadios no espaço reservado aos
enfermos, improvisavam dormitórios a céu aberto e não havia latrinas
suficientes para os mil e quinhentos passageiros da terceira classe!
Na
proa, pela manhã, os imigrantes juntavam-se em pequenos grupos onde passavam a
maior parte do dia. As mulheres lavavam a sua louça nas pias, se penteavam e
arrumavam seus filhos. Outras mulheres amamentavam seus filhos pequenos,
remendavam ou lavavam lenços, atarefadas e angustiadas com a falta de espaço.
Depois do café faziam rodinha com os filhos nos braços e contavam as fofocas,
estórias e escândalos que aconteceram em outras viagens de navio ou mesmo naquele
vapor. Elas preferiam ficar na proa, pois seus quartos, no porão do navio, eram
muito quentes. Nos quartos havia beliches triplos estreitos e apertados. Bastava
uma mulher com seu enorme quadril virar de lado e já tocava o beliche de cima.
As
mulheres conversavam, mas nem por isso deixavam de trabalhar. Estavam sempre
com as mãos ocupadas. E assim ouviam histórias sobre as pulgas, dos piolhos,
das baratas e os ratos que passeavam pelo navio com seus filhotes sem medo dos
passageiros, das histórias de que em outros navios não havia água suficiente e
os marujos controlavam o uso. Algumas mulheres ganhavam nenê durante a viagem,
mas não podiam lavar direito as fraldas para não gastarem água.
Os
oficiais registravam diariamente o percurso da navegação já cumprido e os graus
de longitude e latitude em uma lousa pendurada na porta do salão. Alguns homens
iam até lá diariamente para ler os registros. Outros passageiros esperavam o
horário do almoço. Comiam e depois voltavam para os seus cubículos e ficavam na
cama deitados esperando a próxima refeição, para então subir novamente. A maioria
dos homens se ocupava jogando cartas, cara ou coroa, e tômbola enquanto outros cantavam
durante longas horas. Bastava um chapéu cair ao mar e criava-se alvoroço e
algazarra que, por alguns instantes, preocupavam os oficiais. 1
Na hora do almoço, o chefe do grupo ia buscar a gamela com a comida. Deveria apresentar o cartão com os nomes dos membros do grupo. Não era muita comida, mas era mais do que estavam acostumados a comer na Itália e com mais variedade. Um dia serviam macarrão com molho de tomate no almoço, mas em outros dias serviam arroz branco, feijão preto e farinha de mandioca com carne. Alguns estranhavam e eram logos alertados que era melhor se acostumarem, afinal era o que eles irão comer no Brasil. Também serviam maçãs, laranjas e pão sovado. As verduras, legumes e frutas acabavam logo nos primeiros dias, pois duravam pouco. A noite serviam sopa. Afoitos, alguns imigrantes, depois de pisar em falso, caíam com o nariz na gamela cheia, derramando tudo no chão. Ficavam sem comer, pois havia controle com o cartão. Na hora do almoço, havia grupos de homens, mulheres e crianças espalhado por todo a navio, sentados, agachados, em pé, segurando os pratos na mão ou entre as pernas, onde chefes de rancho tentavam atravessar com azeiteiras e pratos na mão e pães debaixo do braço. Viam-se homens velhos, com os poucos dentes que lhe sobrara na boca, comendo com voracidade, chupando, mascando, enrolando a carne, engolindo o pedaço quase inteiro e estalando os lábios de satisfação.
Dez
dias depois, estavam próximos de atravessar o trópico de Câncer e começa a
mudança de tempo e de estação. Se na Europa era primavera, ali já era verão, um
verão repentino, que fazia com que os burgueses das primeiras e segundas
classes passassem a usar roupas brancas. Um luxo que a terceira classe não
tinha. Muitos vestiam a mesma roupa do início ao fim da viagem. A calma da
rotina só era quebrada por um veleiro que cruzava ou peixes que pulavam para
dentro do barco criando alvoroço, ou a notícia de um novo namoro que começara
no navio. Com o aumento da temperatura, subiam também os ânimos, os desejos e
as paixões.
A proa, lotada de gente era o palco onde se apresentava um grande espetáculo. Não havia uma mulher jovem, casada ou solteira, que não tivesse o seu ou os seus admiradores, lascivo, sem pudor ou prudentes, mais ou menos apaixonados, correspondidos ou não, escondidos ou expostos. Mocinhas e mocinhos flertavam. Mulheres casadas, enciumadas, davam broncas nos maridos que se atreviam a olhar para as outras mulheres. De vez em quanto uma esposa dava um tapa sonoro no marido que era retribuído prontamente, prometendo acertar as contas na América.
Alguns
dias de viagem e começavam a se sentir irritados. Os ânimos e os sentidos
ficavam mais aguçados, a começar pelo olfato. O odor de carvão, de óleo, de
breu e fritura começava a causar náusea. O cheiro fétido de água contaminada,
que subia da entrada dos dormitórios masculinos junto com o mormaço havia
empurrado os passageiros para cima. A multidão estava inquieta. Muitos não
tinham dormido há vários dias. Não aguentavam mais o mar, o navio, a cozinha e
o regulamento. Bastava um nada para levá-los a sair dos eixos. Reclamavam do
calor, dos roncos, das tosses vindas de todos os lados, choros de crianças,
brigas e cochichos, e a batida do mar no casco do navio.
E
o que dizer do clima? O que acontecia com o clima? Em poucos minutos o céu
escurecia. Parecia que a noite tivesse caído de repente. Ouvia-se os gritos: “Tempestade! Todos pra dentro!” - De repente começam as brigas para entrarem
nas passagens cobertas e para debaixo da proa, multidões aglomeradas tentando
entrar nas escadinhas dos dormitórios, como nos trens de subúrbios onde todos
querem entrar ao mesmo tempo, empurrando uns aos outros seguidos de gritos de
blasfêmias e cotoveladas. Os que se espremiam do lado de fora, já totalmente
ensopados, viam com espanto que em poucos minutos, a tempestade acabara. A
nuvem havia esvaziado sua última gota d’água sobre o navio.
A
passagem do navio pela linha imaginária do Equador seria uma festa com comida
extra para os passageiros, mesmo da terceira classe, a promessa de queima de
fogos à noite. Pode ser que tenha acontecido assim, mas pode ser que não,
afinal aquela era uma área muito instável. O céu escurecia de repente e o começava
a ventar. De repente vinha um relâmpago seguido de estrondoso trovão. Os
relâmpagos ficaram mais frequentes, os trovões roncavam com mais força. Os
animais ficavam impacientes e o comissário berrava para os passageiros irem
para as cabines. Seguia-se a fuga desordenada e confusão. Gente tropeçando e
caindo. A tempestade chegava e o céu escurecia como a noite. O mar seguia revolto
e a chuva caia torrencialmente. O navio ficava à mercê do mar com sequencias de
solavancos.
Na terceira classe, no porão do navio, havia grupos amontoados de corpos humanos, uns em cima do outro. As mulheres e crianças chorando desesperadas. Ouvia-se invocações e promessas aos santos. Algumas não seguravam a comida no estomago e despejavam sobre outras pessoas. Nem havia como limpar, pois não se mantinham de pé. Outras mulheres ficaram mudas de tão assustadas. Nem sempre era uma chuva rápida, a agonia durava muitas horas. Mas a noite, com a calmaria, voltava a tagarelice, onde cada um contava uma versão sobre o que acontecera durante a tempestade. Enquanto isso, marinheiros relatavam os prejuízos ao capitão. Uma olhada em volta e via-se o estrago: o mar levara embora vários botes salva-vidas, arrancara e revirara o engradado de perus, afogado dois bois. Havia muitos feridos, a taberna fora destruída, mas havia uma boa notícia, o casco não sofrera danos.
Aparentemente, todos tinham que passar por uma
tempestade assustadora, como uma espécie de ritual de passagem antes de chegar
a América. Era a linha do Equador. A linha imaginária que dividia o planeta
terra em dois, que dividia o Norte e o Sul, que separava a antiga pátria do
novo país.
Passado
o sufoco, voltam a rotina, mas agora com o receio de que outras tempestades similares
ou piores ocorreriam. Começam os boatos de que havia um ladrão no navio. Sumiam
toalhas, sapatos e peças de roupas. Algumas mulheres, com medo de serem
roubadas, dormiam abraçadas às suas trouxas ou com elas amontoadas entre as
pernas. As vítimas acreditavam reconhecer suas coisas nas mãos de outra pessoa,
e começavam discussões e brigas. A acusada negava, evocando Jesus e Nossa
Senhora; a vítima teimava, invocando outros santos do calendário. Mas as brigas
não se restringiam as mulheres. Os maridos começavam a se ameaçar.
Algumas
crianças escapavam das mães e sumiam. Logo surgia um menino ferido porque caíra
de uma escada. A mãe chora desesperadamente. O garoto abre os olhos e é levado
à enfermaria. De repente, inesperadamente, outros meninos, que não tinham nada
com o acontecido levavam tapas nas cabeças e puxões de orelhas de suas mamas
que diziam: “Está vendo? Não façam isso! Se
vocês morrerem, vão ser jogados no mar, pros tubarões comer!” Era
uma educação preventiva, baseada na tortura física e no terror psicológico.
Grupos iam se formando e pequenas facções iam surgindo
ao longo dos dias. Os espanhóis se afastavam dos italianos e preferiam ficar
isolados. Eles eram mais limpos, ordeiros e silenciosos. Não havia integração
com os italianos porque não se entendiam. Os vênetos evitavam os napolitanos.
Estranhavam principalmente aqueles que assoavam o nariz com as mãos, e jogavam
o catarro aos pés dos passageiros, enquanto comiam, sem perceber-se da
imprudência. Também daqueles que ficavam a matar piolhos na presença de todos,
ou se coçavam no seio de suas mulheres sem constrangimento.
As
vezes começava uma briga entre duas mulheres genovesas, logo os maridos
entravam na discussão e a briga passava das mulheres para os homens que
gritavam uns com os outros: “Macarson!
Faccia do gálea! Porco d’um ase! Te veuggio rompe o muro! (Patife, delinquente,
porco, quero quebrar sua cara), “bruttò!
Strason che no’ sei atro!E ghe vêu da faccia!” (Desgraçado, Maltrapilho! É
muita cara de pau.) Obviamente nem todos eram assim. As senhoras mais
reservadas ocupavam-se silenciosas
a remendar peças de roupas, evitando conversar com genovesas ou imigrantes que
não entendia a língua. Vênetos, genoveses e napolitanos falam dialetos
diferentes. Mas depois de alguns dias assimilavam mutuamente as línguas e se
entendiam razoavelmente bem.
Alguns
navios paravam de repente. Havia um silencio preocupante entre a tripulação que
contagiava os passageiros. Tinha início uma correria de marinheiros e
maquinistas sob as ordens do comandante. Muitos imigrantes curiosos faziam
rodinhas em volta do capitão e comandante francês enquanto ele falava com os
maquinistas, tentando entender suas ordens. Não entendiam nada! Assim que os
marinheiros se dispersavam para cumprir as ordens recebidas, os italianos
juntavam-se para montar o quebra-cabeças. Juntavam uma palavra aqui e outra
ali. Algumas delas eram parecidas com o italiano. Um vêneto explicava uma
palavra, o genovês outra que entendera, somavam com uma palavra que o Siciliano
achava ter entendido e tiravam suas conclusões. “Era algo no motor.”
As
mulheres agarravam-se aos filhos e começavam a fazer predições agourentas: “vamos ficar perdidos no oceano” – “Sim, Sim,
vai acabar a água e a comida e vamos todos morrer de fome e sede!” – “Antes de
morrermos de sede, vai ter uma tempestade tão forte que vai afundar o navio!”.
Ignoravam que, mesmo tendo um motor à vapor, o navio tinha velas! As vezes era
algo fácil de concertar e todos ficaram calmos. “Grazie a Dio! Andiamo!” (Graças a Deus! Vamos embora). Mas às vezes
o problema era sério e tinham que continuar a viagem com as velas içadas, o que
acrescentava vários dias e ocasionava racionamento de água e alimentos.
Os
passageiros das primeiras e segundas classes não se misturavam com os da
terceira. Mas, inevitavelmente, com o aumento da temperatura, o cheiro
pestilento oriundo da terceira classe invadia o convés da parte de cima. Por
isso, a maioria dos passageiros das classes superiores evitava o convés e se
refugiavam no salão. Algumas poucas almas nobres e caridosas, se ocupavam em
recolher doações para um camponês febril, ou para um bebê que havia nascido à
bordo.
Em
alguns navios nasciam crianças, mas também morriam idosos enfermos. Alguns já
saiam de Gênova doente e não conseguiam terminar a viagem. À noite, enquanto a
maioria dormia, faziam o sepultamento. O morto era envolto em um lençol branco,
costurado como um saco, que lhe cobria a cabeça, e depois era deitado no seu
colchão dobrado para cima dos dois lados para cima, e amarrado com uma corda em
volta. O padre dava a benção. Como era o costume, todos em volta tiravam o
chapéu e alguns se ajoelhavam. O comandante dava um sinal, o navio reduzia a
velocidade até parar completamente. Dois marinheiros seguravam a prancha pelas
extremidades, a erguiam lentamente e o corpo deslizava para dentro do mar, que desaparecia
no breu da noite. Acabada a cerimônia, os presentes desapareciam e o navio
retomava a viagem.
Logo
começavam as especulações sobre a causa da morte: Seria contagioso? Seria a
peste? Jogariam ele no mar? Não são poucos os relatos de difusão de pestes nos
navios que dizimavam até a metade dos emigrantes. A peste começava com
um simples desarranjo intestinal, depois vinha a febre e em poucos dias chegava
a morte. Quando isso ocorria,
os corpos eram jogados imediatamente ao mar, sem cerimônia e rito. Ao chegar ao
destino, os navios eram colocados em quarentena, o que alongava a angústia e o
desembarque dos passageiros.
Depois
das duas primeiras semanas, perto do fim da viagem, as especulações eram sobre como
seria depois do desembarque. Alguns iriam enfrentar outras viagens após
desembarcas no porto de Santos. Algumas terrestres outra de navio. De um lado havia os grupos do pessimista, que
falavam das perversidades cometidas contra os emigrantes que tinham algum
dinheiro. Prometiam terras férteis e irrigadas por uma pechincha, onde enriqueceriam
em 10 anos. Os pobres emigrantes, depois de esvaziarem os bolsos e partirem,
encontravam desertos de areia, índios a poucos quilômetros de distância, leões
ao redor à noite, cobras de cinco metros que se enfiavam nas casas. Eram obrigados
a fugir e viajar a pé por centenas de quilômetros antes de encontrar um lugar
habitável. Eram flagelados pela chuva durante semanas inteiras, e levados por
ventos infernais que arrastavam animais como folhas secas. Alguns suspeitavam do
exagero e davam de ombros e iam embora, mas muitos absorviam tudo e ficavam
pensativos, preocupados.
Do
outro lado havia os grupos do otimista que falavam de um mundo novo sem
impostos, sem alistamento militar, sem tiranias, não se via a carranca de um
patrão. Contavam dos casos de fortunas feitas quase rapidamente. A terra era
tão fértil que só em ser tocada com a o arado já germinava! Os celeiros
abarrotados, os lavradores que pagavam um professor particular aos filhos. A carne
a cinquenta centavos o quilo.
A iminência
da chegada despertava neles a curiosidade de saber algo sobre as fazendas, as
cidades e o novo país aonde iam se estabelecer. Alguns procuravam os oficiais à
bordo ou outros passageiros mais instruídos e os interrogavam sobre o que
sabiam. Mostravam cartas amassadas dos parentes e dos amigos, gesticulando, e
oferecendo-as para que as lessem. Também as reliam ao lado deles, com aquela
consideração extraordinária que as pessoas analfabetas ou semianalfabetas têm
em relação a qualquer tipo de documento escrito, receosos de que alguma coisa
importante tinha passado despercebido. Se houvesse um brasileiro à bordo, estimulados
pelo sentimento patriótico, descreviam as belezas do país. Falavam do rio
Amazonas, da baía Rio de Janeiro e das montanhas em forma de cone, das palmeiras
e samambaias, das vastas florestas habitadas por macacos, onças e dos papagaios
coloridos.
E
assim a imagem de país tropical exótico ia se projetando e se firmava na mente
dos europeus como nos cartazes que os propagandistas do Imperador Brasileiro
mostravam na Itália. Falavam de animais que os imigrantes não sabiam existir
como antas e jacarés, sapos gigantes, morcegos que sugavam o sangue dos
cavalos, cobras horríveis que sugam o seio das mulheres, rãs que cantam no topo
das árvores, tartarugas de dois metros de comprimento, e as formigas enormes de
São Paulo que os índios comem fritas. Toda aquela conversa atiçava a imaginação
daqueles camponeses que iriam fazer do Brasil a sua nova pátria. Alguns devem
ter se arrependido de ter deixado a Itália para trás, esquecendo-se da miséria
e do sofrimento que os empurraram para dentro daquele barco.
Na
última noite no navio, podia haver uma festa com comida caprichada. Os
passageiros poderiam abrir algumas garrafas de vinho, que trouxeram com eles.
Eram exortados a tocarem seus instrumentos e a cantarem. Os italianos passavam
a noite cantando canções campesinas como El massolin de Fiori, La verginela, La bela violeta, Bela bionda entre
outras. O comandante autorizava a festa até a meia noite e principalmente os
mais jovens aproveitavam até o último minuto.
Perto do desembarque os emigrantes começavam a se lavar às pressas e grosseiramente mergulhando as cabeças nas bacias e gamelas. As mulheres lavavam os pescoços e braços nus de crianças. Algumas se penteavam reciprocamente, ou desembaraçavam o cabelo das crianças. Esvaziavam sacolas e malas puídas em busca de roupas guardas especialmente para o desembarque. As famílias prestavam mil favores entre si, riam e agradeciam cordialmente. Os homens penteavam-se com força a cabeleira que não vira um pente desde a partida do porto de Gênova, ou entravam na fila de para ser atendido por um barbeiro que tinha aberto um estabelecimento a céu aberto. Outros limpavam os sapatos com cuspes e pedaços de pano, outros se escovavam, se sacudiam, passavam em revistas suas roupas amassadas e puídas.
A
espera era interminável e muitos deles já se ajeitavam próximos à porta de
saída, criando tumulto. Alguns estavam preocupados. Ouviram falar dos
navios que faziam quarentena, quando desconfiavam que houvesse passageiros
doentes. Quando isso acontecia, os navios que chegavam da Europa com
passageiros portando alguma doença contagiosa, eram desembarcados na Ilha do
Lazareto, próxima ao Rio de Janeiro onde viviam os leprosos. Os imigrantes
doentes recebiam tratamento e eram tinham que fazer quarentena. O navio era
também retido por quarenta dias e desinfetado com cal e enxofre. Passados os
quarenta dias exigidos por lei, os sobreviventes retornaram ao navio e seguiam
viagem para seus destinos.
Tendo tudo ocorrido bem, desembarcavam no Porto de Santos. Finalmente estavam na América.
Referência e Fontes:
- DE AMICIS, Edmondo - Em Alto Mar - Tradução Adriana Marcolini pp 135
- BATTISTEL, Arlindo Itacir. Polenta e Liberdade: Saga
de imigrantes italianos. Porto
Alegre: Evangraf, 2016.
- Vapor La France – Blog da familia Pollini - http://familiapollini.blogspot.com/2012_02_01_archive.html?view=classic
- Uma aparente turnê do Titanic (1912) Videos - https://www.youtube.com/watch?v=x2_CvBNf-2g
- Titanic departure (real video 1912) - https://www.youtube.com/watch?v=jkjjxioYIuE
- Youtube - Álbum: Araldo e Araldinho – Os italianos - https://www.youtube.com/watch?v=ISn3V1HmeUM&list=PLByNKh7uTSX87zgdZfyxKVPQdJK00j59G
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