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23 - O Café – Da roça ao bule

Vamos fazer mais uma pausa para o café e falar sobre ele. Como não falar do café? O café faz parte da nossa rotina. Como começar o dia sem primeiro tomar uma xícara de café bem forte? E o que dizer dos cafés espresso feitos em máquinas portáteis como Dulce Gusto e Nespresso, pelo menos uma vez por dia? Quando o tomamos, seria pelo gosto, pela sensação de energia ou pelo aroma? 


            Os italianos aperfeiçoaram o processo do preparo do café até chegar a excelência. E os nomes dos cafés que eles criaram? Temos o caffè espresso, doppio, restretto, lungo, machiatto caldo e machiatto fredo, corretto, cappuccino, mocaccino, marocchino, caffèlatte, latte macchiato, entre outros. Há até musicas italianas homenageando o café como Cosa hai messo nel caffè. Mas enquanto os italianos lá na Itália criavam maneiras e nomes diferentes para o café, aqui no Brasil, várias gerações de imigrantes da Península trabalhavam pesado nas plantações de café. Só na minha família, foram três gerações trabalhando nos cafezais no Estado de São Paulo. Portanto, ele faz parte da nossa história. 

Já vimos a historia do café, sua chegada ao Brasil e o que mais nos interessa: como ele foi importante para a economia de São Paulo e o motivo que levou tantos imigrantes a virem para o Brasil. Mas como era plantado e quais os cuidados envolvidos para que seja um produto de qualidade e competir com vantagem a concorrência estrangeira? A resposta nos ajuda a entender como era o trabalho dos imigrantes nas fazendas de café.

  A plantação começa com as sementes que são colocadas em sementeiras de madeira laminada.  A matéria-prima para um café de qualidade é constituída de frutos-cerejas sadios e graúdos ocorridos em ramos vigorosos. São aguadas diariamente e mantidas em estufas para as mudas crescerem. Depois de quarenta dias, as sementes começam a emergir do solo. A implantação do cafezal requer planejamento, a começar pela escolha da variedade mais adequada às condições de clima e solo de cada região, combinando os espaçamentos mais compatíveis com o manejo que se pretende adotar. Em época apropriada, depois das terras previamente adubadas, as mudas são plantadas. A distância entre os pés de cafés são de 2,40 m e entre uma e outra fileira, o espaço deve ser de 3,20 m, o que permite a passagem de máquinas pulverizadoras e facilita a capina e a livre movimentação dos trabalhadores. 1

Segundo o manual do EMBRAPA, a definição do espaçamento entre as linhas deve ser feita de acordo com as máquinas disponíveis no mercado (2020). O plantio deve ser feito com as mudas alinhadas para reduzir a quebra de ramos das plantas, das varetas e aletas da máquina na colheita do café; e os carreadores para manobras são locados com largura de 7 metros para as tracionadas e de 5 metros para as automotrizes. Na década de 50, não se utilizava os plantios em linhas rígidas geométricas, que foram condenados pelos técnicos. Os cafeeiros devem ser dispostos em fileiras, paralelos ou não, seguindo as curvas de nível dos terrenos para evitar as consequências da erosão. A erosão e a geada são umas das piores calamidades que podem atingir um cafezal.

As pragas e doenças como as brocas devem ser combatidas e as reservas de água são necessárias para permitir a irrigação, essencial em face da irregularidade das chuvas. Deste a década de 1950 a irrigação já estava disponível pelo método da aspersão. A água é bombeada de reservas de águas ou açudes, construídos na fazenda.

A floração dos cafezais é um espetáculo de rara beleza. A importância da colheita exige um grande numero de trabalhadores especializados. Visualize os trabalhadores seguindo em fileira até o cafezal, vestidos de botinas, calças compridas, blusas de mangas compridas, lenço na cabeça e chapéu de palhas com aba larga. As mulheres vestindo calças por baixo das saias longas. As roupas, além de evitar picadas de insetos e cobras, protegiam do sol abrasador. O trabalho da colheita é supervisionado por capatazes que percorrem as fileiras de cafeeiros montados em cavalos.

O documentário O Café - História e Penetração no Brasil 1 discorre sobre dois tipos de colheita: o café de terreiro, quando o grão já esta seco e o café despolpado. As fazendas que fazem colheita quando o grão já está seco são maiores em número. O café é colhido no ponto. Os trabalhadores fazem a colheita manualmente. A colheita manual por derriça consiste em retirar os grãos do cafeeiro deslizando as mãos pelos galhos, de cima para baixo. Os grãos caem sobre um pano ou lona colocado aos pés do cafeeiro. Segundo Afonso Taunay,2 a derriça durante a colheita do café era e é o procedimento mais comum de apanha. Os que insistem em ficar presos aos galhos são retirados um a um e colocados em um balaio ou peneira. Alguns trabalhadores carregavam uma peneira que era escorada entre o cafeeiro e o seu corpo e durante a derriça, os grãos caiam na peneira. Os trabalhadores jogam os grãos para cima com força, esses caem de volta na peneira e são projetados novamente para o ar. Assim folhas secas e outras sujeiras são levadas pelo vento.  Ali mesmo já começa a seleção do produto. São retirados os grãos ruins, velhos e defeituosos, e a grande maioria são colocados em sacas ou balaios e levados até as calhas de água. 

Os grãos de café são carregados do cafezal ao terreiro de secagem através das canaletas ou calhas. No terreiro de secagem, os grãos são recolhidos pelos trabalhadores com auxilio de carriolas e depois são despejados em pequenos montes pelo terreiro. Logo em seguida, outros trabalhadores, homens ou mulheres, espalham os grãos com o uso de rodos ou rastelos, que são instrumento de agricultura constituído de uma grade de dentes com cabo adaptado, próprio para limpar, aplainar e afofar a terra. O trabalho de rodo é exaustivo, mas só assim se consegue uma secagem uniforme. São também espalhados com rodos grandes puxados por animais como mulas e burros. O café de terreiro, colhido no ponto, quando é secado com os devidos cuidados, sem fermentações prejudiciais proporcionam um bom produto.

Outra forma de se colher, mencionado no documentário é o café despolpado, ou colheita seletiva, que é feita no pano somente dos frutos cereja. Por ser uma operação que necessita de maior mão de obra, é mais empregada por alguns cafeicultores com o objetivo de se obter um café superior, uma vez que cereja é a matéria prima adequada. Trata-se de um café de alta classe ou extra fino. Essa colheita exige um sistema diferente da colheita do café de terreiro, quando o grão está seco. O café deve ser colhido perfeitamente maduro, em cereja e requer cuidados especiais no colhimento. Por ser um café colhido no ponto exato de maturação, a colheita deverá ser repetida muitas vezes. Os frutos verdes serão colhidos mais adiante quando estiverem maduros. Nesse caso, poderão ser necessárias duas a três colheitas por planta ou talhão devido à não uniformidade existente na maturação do café.

Mas o trabalho é altamente compensador. O despolpamento deve ser feito logo depois da colheita, para evitar que o grão murche ou fermente. Com os despolpadores mecânicos, a própria maquina faz a lavagem da colheita para separar as cerejas, isto é, o café que deve ser despolpado do boia, nome dado ao café seco e as impurezas. Logo após a lavagem, as cerejas selecionadas passam por peneiras e sofrem então o processo de despolpamento que consiste em destacar da polpa os grãos. Devemos lembrar aqui, que estamos falando de máquinas modernas para a década de 1950.

O café despolpado é lavado e batido com rodos em tanques com abundante água corrente para eliminar toda camada mucilaginosa (substancia gelatinosa), polpa aderente ao pergaminho. Novamente são carregados em calhas até o local onde são colocados em carrinhos e levadas para o terreiro para serem secas. A secagem do café despolpado deve ser repetida até o ponto exato. Considerando-se que uma secagem lenta, influi poderosamente na qualidade do produto.

A próxima etapa é o beneficiamento do café. O beneficiamento do café é o conjunto de procedimentos para homogeneização, que consiste na separação do fruto do café da casca e do pergaminho. Bem antes de 1900 o beneficiamento era feito manualmente usando métodos e equipamentos rudimentares. Pilava-se, descascavam, batiam e trituravam os grãos utilizando varas, animais para pisotear os grãos e pilões manuais. Até 1888 o trabalho era feito majoritariamente por escravos. As desvantagens dos processos eram que, além de ser rústico, de baixo rendimento e exaurir o laborioso escravo, dava um produto de péssima qualidade. Surgiram então as máquinas movidas a força hidráulica, entre elas o monjolo e o pilão d’água. O próximo passo no aperfeiçoamento das máquinas de beneficiar café foi o uso das maquinas movidas a tração animal. Entre elas estavam o monjolo de rabo e o carretão. Suas características eram os diferentes tipos de almanjarras, também denominadas atafonas ou manejos.

Entre 1859 e 1860 apareceram as máquinas de descarga contínua acionadas por motor hidráulico. Essa época marca o início da verdadeira revolução no terreno da mecanização do preparo do café. Elas foram aperfeiçoadas para beneficiar o café nas seguintes operações, o transporte, limpeza, descascamento, ventilação, repasse, classificação e catação. De 1860 em diante multiplicam-se o uso de despolpadores; estufas de seca e secadores também se multiplicaram e a partir de 1870 as fábricas Lidgerwood, Mac Hardy, Hargreaves, etc começaram a fornecer “máquinas de méritos patentes” como descascadores, ventiladores, brunidores, separadores, despolpadores de diversos tipos, como os de disco e cilíndricos. Em 1884 a Lidgerwood alugou a Fundição de João Miguel Bierrenbach na antiga Rua da Constituição, Campinas, SP contando com apenas dez operários e passou a fabricar máquinas no Brasil, não sendo mais necessário a importação delas. Em 1880 surgiu o locomóvel como elemento central da mecanização de todo o processo de beneficiamento. 3

A ciência e a técnica substituíram os velhos monjolos, pilões e carretões nos processos de beneficiamento, que por meios arcaicos, por modernas maquinas cada vez mais eficientes, já fabricadas no Brasil e exportadas. As maquinas modernas de beneficiamentos da época, eliminam ainda algumas impurezas ainda existentes, e procedem as seleções dos tipos. A última fase do beneficiamento é a catação. Apesar dos sofisticadíssimos recursos e máquinas existentes, não se dispensa a catação manual.

A classificação do café tipo é feita com base na contagem dos grãos defeituosos ou das impurezas contidos numa amostra de 300 g de café beneficiado. Esta classificação obedece à Tabela Oficial para Classificação, de acordo com o qual cada tipo de café corresponde a um número maior ou menor de defeitos encontrados em sua amostra. Por exemplo: Tipo 2 (4 defeitos) - Tipo 3 (12 defeitos) - Tipo 4 (26 defeitos) - Tipo 5 (46 defeitos) - Tipo 6 (86 defeitos) - Tipo 7 (160 defeitos).

Para nós leigos, às vezes é fácil confundir a classificação do café. No Brasil a classificação de café beneficiado, segue a Instrução Normativa Nº 08 de 11 de junho de 2007. De acordo com este regulamento são critérios para a classificação de café beneficiado: categoria, subcategoria, grupo, subgrupo, classe e tipo, segundo a espécie, formato e granulometria, aroma e sabor, a bebida, a cor e a qualidade, respectivamente.

Os grandes exportadores que adquirem cafés de várias regiões, possuem sofisticados locais de beneficiamento que selecionam os vários tipos da rubiáceas exportáveis. O café produzido no Brasil tem dois destinos, o consumo interno e o consumo externo. Nos portos e no momento de embarque é feita uma rigorosa inspeção do produto a ser exportado pelo o Instituto Brasileiro do Café.

Agora que entendemos como o café era plantado e quais os cuidados envolvidos para que seja um produto de qualidade para competir com vantagem a concorrência estrangeira, fica mais fácil entender o trabalho feito pelos imigrantes nas fazendas de café e porque havia um controle tão rigoroso de seu trabalho, para manter a qualidade desde produto que valia ouro.

O trabalho nas plantações de café começou com os imigrantes do Vêneto que chegaram aqui em 1888. Seus filhos aprenderam com seus pais o trabalho e depois ensinou os filhos dele. Meu pai, a terceira geração desses imigrantes também trabalhou em cafezais junto com seus irmãos. No final da década de 1980 e meados de 1990 havia alguns poucos que ainda trabalhavam com café e finalmente mudaram para outras áreas. Foram quase cem anos de trabalho nos cafezais do Estado de São Paulo. O café foi a riqueza para o Estado, para o Brasil e o sustendo para a maior parte da minha família.



Notas e Referencias: 

  1. Esse texto é baseado no filme documentário O Café  - História e Penetração no Brasil de 33 minutos feito pelo Ministério da Educação e Cultura. Foi gravado em 1958 e dirigido por Humberto Mauro e está disponível na Cinemateca Brasileira . O diretor tomou como base o livro de A História do Café do escritor Affonso de E. Taunay.  Trata-se de um registro em imagens de como a cafeicultura se portava na década de 1950 e mostra o museu do café em Ribeirão Preto, mapas que descrevem o percurso do produto do vale do Paraíba até chegar em São Paulo e passa pelas etapas de produção, do plantio até como preparar  a bebida em casa. Afonso d´E. Taunay  foi pioneiro ao abordar a questão da mecanização agrícola por repetidas vezes no decorrer dos 15 volumes de sua extensa obra escrita: a História do café no Brasil entre 1929-1941. 
  2. A ficha técnica do filme pode ser encontrado no site Mexido de ideias  

Fontes: 

  1. COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo, Livraria Ciências Humanas Ltda, 1982, p.161,162, 166,167. ________________, “Da escravidão ao trabalho livre – 5. Aperfeiçoamento no processo de fabrico do açúcar e beneficiamento do café”. História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Monárquico. Reações e Transações
  2. Manual do Café, Colheita e preparo: Artigo produzido pela EMATER, MG 
  3. Artigos produzidos pela EMBRAPA: Café: Beneficiamento e industrialização. 
  4. CARNIER JÚNIOR, Paulo. O TRABALHO NAS FAZENDAS - em: A IMIGRAÇÃO PARA SÃO PAULO: A viagem, o trabalho, as contribuições  


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