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31 - Colina (1968-1974)

Quando criança, durante as férias escolares, eu passei algum tempo com meus avós e meus tios nas fazendas em Colina, SP, onde eles moravam e trabalhavam. Eu e minha família dividíamos o tempo das férias entre duas fazendas, a Retiro, onde morava Antônio Sarti, o irmão mais velho do meu pai, e Palmital onde morava Ângelo Sarti, meu avô, com suas respectivas famílias. Na fazenda Palmital, convivemos com os filhos dos imigrantes, que ainda de alguma forma mantinham a cultura e costumes dos seus pais, o Giacomo Sarti, Amabile Feltrin e Carlo Tiozzo. Na fazenda Retiro, convivi com os netos e bisnetos desses imigrantes que já haviam assimilado uma porcentagem bem maior da cultura caipira. Dessa forma observava a rotina e o cotidiano deles e de alguma forma participava delas também. Portanto, ao falar do mundo caipira não falo como estudioso, mas como observador e participante. 

“Vamos pro interior!”

         A primeira viagem para Colina de que me recordo foi a que fizemos em janeiro de 1968. Fizemos outras viagens antes dessa data, mas foi nessa que meu pai, pela primeira vez tirou fotografias. Das viagens anteriores, ficaram apenas as histórias que meus pais contam ou as lembranças que vem como flashes de luz à minha mente. Em janeiro de 1968 eu acabara de completar seis anos de idade, mas seguimos fazendo viagens como essa, em família, nos próximos anos até 1974 quando eu completei doze anos. Depois as viagens foram irregulares. E em 1979, quando eu tinha dezesseis anos eu fiz a primeira viagem sem meus pais para lá. 

A viagem era feita de trem. Não era mais a Maria Fumaça, parte da viagem era feita com locomotiva elétrica e parte com locomotiva à diesel. Viajávamos nos vagões de segunda classe. O trem partia às 8 horas da manhã da Estação da Luz, São Paulo. Seguíamos dentro do vagão por longas nove horas e chegávamos em Colina por volta das 17 horas da tarde. A viagem era feita nos trens da Cia. Paulista de estradas de ferro (1909-1971) que passou para a FEPASA (1971-1998). Passávamos pelas cidades de Jundiaí, Campinas, Americana, Limeira, Rio Claro, São Carlos, Araraquara, Rincão, Bebedouro e descíamos na estação da cidade de Colina, SP. O momento mais esperado era quando o trem diminuía a velocidade para passar pela ponte sobre um enorme e volumoso rio. Não me lembro o nome do rio. Depois do rio começávamos a nos preparar, pois estava perto. 

Nessas primeiras viagens, ao chegarmos a Colina pegávamos um taxi e seguíamos para a fazenda Retiro. Lá moravam meus tio Tonho (Antônio Sarti), a tia Clair e seus seis filhos. Eu minha irmãs gostávamos de lá porque tínhamos os primos da mesma idade para brincar: Idalina e Elza (8), Marcia e eu (6), Marcos e Rita (4) e Toninho e Silvia (2). A Zenaide (12) e a Esmeralda (10) eram mais velhas e passavam mais tempo ajudando meus tios no trabalho da fazenda ou de casa. Para nós, os dias na fazenda Retiro eram muito mais divertidos.

Naquela época não havia telefone, então era costume mandar recados entre as pessoas. Já na cidade, em Colina, meu pai mandava recado para o meu avô que estávamos na fazenda Retiro. Pedia para alguém avisar outra pessoa que possivelmente passaria o recado para o meu avô. Este meio de comunicação parecia infalível, pois entre dez e quinze dias, meu avô aparecia na fazenda Retiro para nos pegar. De alguma forma ele ficava sabendo. Umas duas semanas depois, meu avô Ângelo vinha com uma charrete puxada a cavalo nos buscar. Aquela viagem era muito aguardada pela criançada!

Fazenda Palmital

Pouco tempo depois de mudarmos para São Paulo, em novembro de 1963, meu avô, Ângelo Sarti também se mudou da fazenda Caçula e foi para a fazenda Palmital, na mesma cidade, Colina, SP onde continuou a cuidar de pés de café com a ajuda dos filhos Evaristo, Vitalino, Zulmira, Nadir e Paulo. Assim como seu pai, meu avô Ângelo mantinha os filhos sempre perto dele formando um clã do qual ele era o chefe. Viviam de forma rudimentar, como os imigrantes viviam. 

Em uma casa da colônia ao lado da casa dos meus avos, morava uma sobrinha da minha avó que também se chamava Virginia. Mas não tinham crianças da nossa idade para brincar com a gente. Este era um dos motivos porque não gostávamos muito de passar parte das nossas férias lá na fazenda Palmital.

Não havia eletricidade e consequentemente, não havia refrigerador ou lâmpadas elétricas. A água era puxada de um poço, e cozinhavam em fogão à lenha. A noite a casa era iluminada com lamparinas à querosene e nem mesmo podiam ouvir um rádio. Viviam assim isolados da vida da cidade, de outros vizinhos e do mundo. Levantavam muito cedo, mas minha avó era sempre a primeira a levantar-se. Acendia o fogão à lenha para fazer o café. Logo, o cheiro do café se espalhava pela casa com os gritos da nona despertando todo mundo: “Nadire, levanta, Paulo, Nego, hora de acordar!”. Alguém ia ordenhar a vaca para trazer o leito fresco para ser fervido antes de bebermos. O pão, feito pela minha avó, que era guardado dentro de um saco, em um baú na cozinha, logo estava sobre a mesa. Quando nós levantamos para comer, os homens já haviam ido para a roça trabalhar no cafezal. Nós estávamos de férias, mas eles não. Continuavam com sua rotina diária. 

Antes das nove da manhã, minha avó já estava com o almoço pronto. Ela enchia vários caldeirões de alumio com arroz, feijão e no topo colocava um ovo e linguiça fritos. Ajeitavam os caldeirões em um ‘emborná’ (embornal, tipo de sacola) para minha tia Nadir levar para os homens na roça. Normalmente, ela ficava lá para ajudá-los no trabalho. Eu os via voltando à tardinha, bem antes do sol se por e achava engraçado a maneira como estavam vestidos. Para se proteger do sol, usavam camisas de mangas compridas, lenço em volta do pescoço e se não me engano, até na cabeça. Também usavam um chapéu de palha de abas bem largas, e botinas pesadas nos pés. Voltavam carregando os embornais com as marmitas vazias, e quase sempre estavam acompanhados de um ou dois cães. 

Minha tia Zulmira, quase sempre trazia um feixe de lenha na cabeça. Quando não, um dos meus tios ia rachar lenha para a minha avó. Depois de várias machadadas sobre um grosso tronco e logo havia lenha suficiente para ela começar a fazer o jantar. Minha avó, industriosa e comandante, gritava as ordens, e assim, cada um se ocupava com algo para fazer. Um tio ia tirar palha do milho para dar aos porcos enquanto uma das minhas tias ia debulhar milho para as galinhas.  Um enchia os baldes de água, outros iam aguar a horta e na volta trazia verdura para a janta. (fotografia: Reinaldo Sarti no curral com alguns bezerros)

Meus tios, homens jovens, ainda tinham força para “bater uma bola” com amigos da colônia. Na hora do banho, usavam um cômodo da casa, pois se me lembro bem, nem banheiro, ou patente havia do lado de fora da casa. Se fizeram um, foi construído um pouco mais à frente, depois de 1968. Jantavam cedo e nós comíamos com eles. Não nos sentávamos à uma mesa, pois nem havia lugar para todos. Minha mãe se encarregava de colocar a comida para nós, meus tios e avós eram servidos pela minha avó e a medida que pegavam os patos de comida, sentavam no degrau da escada entre a sala e a cozinha, um banquinho, na porta da cozinha, onde houvesse espaço, mas sempre longe do fogão, para fugir do calor. Das panelas fumegantes vinha o aroma do toucinho e banha de porco misturado ao feijão que entrava pelas nossas narinas despertando apetite. A dieta não variava muito. Arroz, feijão, linguiça e ovos fritos, uma abobrinha refogada e salada verde temperada com sal, óleo e suco de limão galego. Simples, mas delicioso! (Foto: Nadir, Zulmira e Alvino)

O sol se punha perto das 19 horas no verão, as lamparinas eram acesas dentro de casa e lá fora, a lua e as estrelas se encarregavam de iluminar o quintal e o pasto na frente da casa. Os animais iam se aquietando, as galinhas iam para os poleiros, uma vara dentro do galinheiro, elevada do chão, onde as aves dormem.  E não demoravam muito os únicos barulhos que ouvíamos era um cão latido ao longe, talvez o piar de uma coruja, e grilos chilreando.

No dia seguinte, mais um dia de rotina. Minha avó Virginia Tiozzo acordava e já colocava o lenço na cabeça e o avental sobre o vestido. Fazia o café e começava a despertar o marido e os filhos. O galo já havia cantado várias vezes e as galinhas a cacarejar, as vacas começavam a mugir, os burros a zurrar, e os porcos a grunhir e roncar. Os homens iam à roça e em casa ela se ocupando com a lista interminável, já pronta em sua cabeça, de coisas que tinha para fazer. Sempre industriosa, todos os dias acendia o fogão à lenha, cozinhava e lavava a louça, pegava água no poço com balde, debulhava o milho para as galinhas. (Fotografia: Luiz Paulo, Virginia Tiozzo, Vitalino (Nego) e Rita com o gato)

Havia o dia de lavar roupas. Era preciso ferver a roupa no taxo para tirar o encardido da terra vermelha. Uma vez por semana fazia sabão em casa ou fazia pão. Amassava, deixava crescer sobre folhas de bananeira e depois colocava no forno à lenha, previamente aquecido. Para nos agradar, ela fazia pãezinhos menores. Sua vida era trabalhar e colocar os outros para fazer o mesmo!

Se não bastasse o trabalho regular, ainda havia a disputa entre as mulheres de quem tinham as panelas mais brilhantes e o quintal mais bem cuidado. Ao ler um trecho do romance Anarquistas Graças a Deus de Zélia Gatai, lembrei desse costume das mulheres, não apenas na cidade, mas também no interior:

“Consumiam mãos e unhas na poderosa mistura de cinza e areia com que esfregavam as peças, mas sentiam-se recompensadas. Em torno dos caixilhos das janelas, permaneciam penduradas, em exposição, brilhando, ofuscando a vista dos passantes, panelas e frigideiras, caldeirões e caçarolas, de todos os tamanhos e formatos, motivo de elogios e glória para suas proprietárias, enchendo-as de orgulho e vaidade.”

O domingo era dia de descanso do trabalho da roça, mas não do trabalho na colônia e em casa. Ainda era preciso separar os bezerros das vacas, tirar o leite, alimentar as galinhas e retirar os ovos para não serem chocados, dar lavagem e milho aos porcos. Mas era dia de mudar o cardápio. Matavam um frango para comermos com macarrão temperado com molho de tomate. Era dia do meu avô tomar vinho de garrafão e ficar alegre. Comia estalando os lábios de prazer. Alguns homens jogavam bocha e malha, outros cartas. Os mais jovens já se interessavam pelo futebol. À tarde meus tios encontravam alguns dos amigos da mesma idade para jogar. Quando o sol se punha, se juntavam para tocar e cantar moda de viola.

Em pelo menos uma dessas viagens eu os vi matarem um porco. Talvez em um desses domingos. Matar um porco exigia planejamento antecipado e preparação como ferver água, afiar facas, separar utensílios e demandava o auxílio de várias pessoas, homens e mulheres. Na hora de matar, enquanto um agarrava o porco, outro espetava a faca na garganta do animal e deixavam o sangue escorrer. Depois colocavam o bicho encima de uma mesa e enquanto alguém jogava água quente com uma concha, meu avô raspava o pelo. Em seguida abriam a barriga dele para tirar as vísceras. A próxima etapa era retalhar o porco, separando as partes e picando a carne. Minha tia Nadir pegou as tripas e foi até um córrego lavá-las. Depois de limpas e temperadas seriam preenchidas com a carne moída do porco. Era assim que faziam linguiça. Quando voltamos, meu avô usava uma máquina para moer parte da carne. Talvez fosse dele, talvez emprestada. Matar o porco era momento de mostrar solidariedade também e contar com ajuda dos vizinhos. Retribuía-se com a distribuição de pedaços de carne aos vizinhos. Segundo a Zenaide, era costume dar carne aos colonos que moravam duas casas à direita e duas casas a esquerda, e não para todo mundo. As linguiças eram guardadas em latas com banha. Era a forma que usavam para conserva-las. Não era costume pendurá-las em cima do fogão, talvez devido ao calor intenso que fazia na região. Depois de um tempo sentíamos o gosto de ranço ao comer a linguiça, mas naquele dia tínhamos carne fresca na refeição, toucinho e torresmo frito também.

 Segundo minha mãe, eu fora pela primeira vez para Colina com meu pai, em 1967 quando eu tinha cinco anos. Nesta ocasião, eu me perdi nos pés de café. Esta foi a primeira vez que eu os vi trabalhando nos cafezais. Eu era muito pequeno para entender o que faziam e como faziam. Mas pelo menos eu posso dizer que estive em um cafezal, in loco. Como esse capítulo trata das minhas memórias, essa parte da história será elaborada no próximo capítulo.

As fotografias

Meu pai fez retratos dos seus pais, irmãos e seus filhos. Sem saber, ele também fazia registros arquitetônicos, de moda e de paisagens. Essas fotografias são também documentais, pois quando colocadas lado a lado, contam uma historia e alguns acontecimentos do cotidiano. Através dessas fotografias é possível voltar no tempo e reviver aqueles momentos passados na fazenda Retiro e fazenda Palmital. Quando meu pai tirou as fotografias de seus pais e irmãos ele tinham em mente ter um registro para matar saudades. Mal sabia ele que seria o registro de uma época que estava por findar!

Na fazenda Palmital:

Nas fotografias vejo como meu avô era alto e magro. Sempre usando as calças largas e amarrotadas presa à cintura a um cinto fino de couro marrom. Camisa de mangas longas e botinas nos pés. Em outra fotografia, minha avó Virginia usava um vestido de cor escura. Quatro botões eram os únicos enfeites na roupa sóbria. Ela sempre usava lenço na cabeça, mas o fato de estar sem ele, mostra que havia se preparado e se arrumado antes de tirar a fotografia. 

As fotografias mostram alguns animais da fazenda. Em uma delas eu monto o cavalo Sinzano. Eu era tão pequeno, que meus pés ainda não alcançam os estribos. Em outra fotografia, meu pai, está ao lado da vaca Fumaça, tão branca quanto o cavalo Sinzano. Fumaça era mansa, a vaca Andorinha, de cor escura, era mais brava. Elas forneciam o leite para uso da família e dele, nós, crianças bebíamos no café da manhã.

Ao fundo das fotografias, vemos as casas da colônia. Havia duas portas viradas para a parte da frente da casa e duas janelas. Um cômodo menor do lado esquerdo, provavelmente a cozinha. Uma casa de tijolos sem reboque, pintada com cal branco do lado de fora. Tantas vezes foram pintadas que quase parecem rebocadas. Na parte de baixo da parede há uma faixa de cor marrom avermelhado. Era feita pela água da chuva que ao pingar do telhado, misturava-se ao barro e espirrava na parede. Em uma delas vemos um pedaço de terra vermelha sem a grama verde do pasto, e também arvores plantada próximo à cerca, possivelmente onde iniciava a plantação de café. Também era vermelho o chão batido do quintal em frente da casa. Segundo um dos meus tios, era ali que colocavam o café para secar, pois na fazenda Palmital, não havia terreirão (terreiro de secagem). 

A vista da porta da sala era o enorme na frente da casa. Ele precisava ser atravessado até chegar a área de plantação de café. Na fotografia em que monto o cavalo Suzano, um pouco mais afastada da casa da colônia, é possível ver atrás da casa uma plantação e bem mais ao fundo, arvores bem alta. Mas ao lado das casas da colônia, quase não havia árvores. Havia uma cerca na frente da casa que separava a colônia do pasto e impedia a passagem do gado. O curral ficava logo depois da cerca. Em uma fotografia de 1974, meu pai está dentro do curral com três bezerros e há muita palha e sabugo de milho no chão. O céu azul, sem nuvens me lembra como os dias eram quentes e úmidos. As roupas grudavam ao corpo e as moscas e mosquitos infernizavam nossas vidas com seus zumbidos, dentro e fora de casa.

Algumas fotografias de 1969 foram tiradas na parte de trás da colônia. Em uma delas eu estou em frente a um jardim com várias folhagens coloridas. Se me lembro bem, era um jardim que ficava próximo a uma horta. Sim, havia uma horta onde plantavam verduras e legumes e perto do jardim, ao fundo da colônia, havia um bananal, e daquele lado também ficava o chiqueiro dos porcos, o galinheiro, o paiol de milho. Havia uma área de serviço coberta bem perto do poço d’água onde ela lavava roupas. Não havia tanque com torneiras. As bacias eram colocadas encima de uma mesa e as roupas eram esfregadas em uma tábua enorme. Ao lado ficava também o forno onde minha avó assava o pão. Tais construções podem ter sido feitas entre 1968 e 1974. Cada ano havia algo diferente na colônia. Em uma fotografia de 1974, percebo na frente da porta uma calçada que não havia nas primeiras fotografias e também algumas folhagens coloridas. 

Em uma fotografia de 1974 estou novamente montado sobre o cavalo Sinzano, mas desta vez, meus pés alcançavam os estribos. Nós e as plantas em volta das casas da colônia crescemos. Alguns tios se casaram e algumas crianças nasceram. A eletricidade e o progresso chegaram. Havia canos altos de metal que seguravam no final as antenas de TV.

Fazenda Retiro:

Meu pai também tirou fotografias na fazenda Retiro. Em uma delas, tirada no pasto, é possível ver uma pequena ponta do enorme açude da fazenda. Para nós, crianças, Retiro era sinônimo de açude. Foi nele que tanto eu e minhas irmãs como minhas primas aprendemos a nadar com o meu pai. Era por essa ponta que ensaiávamos entrar na água, experimentando a temperatura da água, antes de se jogar de cabeça e molhara o corpo inteiro. Mais tarde contraíram naquela ponta o ladrão, uma construção para ajudar a escoar o excesso de água e evitar que a represa se rompa. É possível ver também os pés altos de eucaliptos, plantados na parte de trás da rua que passava em frente à represa. Eram plantados, na borda provavelmente para ajudar a conter a força das águas do reservatório. 

     Na fotografia em que aparecem minhas primas Esmeralda e Zenaide com seus irmãos Toninho e Marcos, conseguimos ver no canto esquerdo, um pedacinho da casa da colônia onde meus tios moravam. Eles chamavam de coloninha. Mal sabiam eles que um dia seriam todas derrubadas!

Em outra fotografia, onde aparecem minhas primas Idalina e Márcia, se a intenção do fotógrafo era descrever o sujeito humano, nela vemos Márcia séria e Idalina sorrindo! As roupas, elas pegaram emprestadas das minhas irmãs. A camiseta listrada que a Idalina usa é a mesma que eu estou vestindo na fotografia montando o cavalo Sinzano, na fazenda Palmital. As duas vestem sapatos. Lembro que nas fazendas, usavam sapatos apenas em ocasiões especiais, por exemplo quando iam à igreja ou à cidade. No dia a dia, bastava um par de chinelos Havaianas, na época, bem baratos! Quando não, andávamos descalços mesmo! Uma fotografia onde aparecem minha tia Clair, tentando controlar os dois filhos, Marcos ainda com chupeta na boca, e o menor, Toninho, em frente a casa da colônia, é praticamente uma fotografia documental, daquelas tiradas para registrar o cotidiano, sem poses e posições marcadas. 

A fazenda Palmital parecia um tanto árida quando comparada à fazenda Retiro. Quase não havia arvores em volta das casas. Na fazenda Retiro havia árvores frutíferas que atraiam matracas, papagaios e até tucanos. Havia duas colônias, a colônia, mais antiga e a coloninha, mais nova, uma de cada lado do açude. Com meus primos aprendíamos os prazeres do lazer caipira como subir nos pés de árvore e comer frutas, nadar e pescar no açude. Foi lá que experimentei pela primeira vez frutas que nunca havia visto em São Paulo como pinha, seriguela e vários tipos de mangas. Havia também as coisas proibidas como brincar de rodar na cadeira de barbeiro do meu tio, comer amendoim cru que ficava estocado em um cômodo da casa, ou tomar vinho misturado com açúcar, escondido, é claro! Os dias passavam rápidos, e nos divertíamos muito lá. Se me recordo bem, as primeiras semanas ficávamos na fazenda Retiro, e depois íamos para a fazenda Palmital. Ficávamos menos tempo lá. 

No final de quase um mês, era hora de voltarmos para São Paulo. No momento da despedida, sentia a mão calejada de minha avó tocando meus braços e mãos e me abraçando forte. Ela nos beijava várias vezes chorando na hora de dizer adeus. Logo estávamos na charrete do meu avô e partíamos para Colina. No dia seguinte, era hora de pegar o trem para voltar para São Paulo. (Foto: Marcia e Idalina)

Hoje, olhando para o ando de 1968, observo que meus avós viviam de forma muito parecida aos seus pais que chegaram ao Brasil em 1888. Oitenta anos os separavam daquele evento, mas enquanto moravam na colônia, seguiam a mesma rotina e tinham o mesmo estilo de vida dos seus pais, os Sarti, Feltrim e Tiozzo. Mas entre 1968 e 1974, muita coisa mudou. Por volta de 1974 já havia eletricidade nas casas da colônia e meu avô já tinha um radio. Hoje no museu de Colina há um modelo de radio exatamente como era o meu avô. 

Notas e Referências

Histórico da Linha ferroviária Cia. Paulista de Estradas de Ferro: A linha-tronco foi aberta com seu primeiro trecho Jundiaí-Campinas, em 1872. Foi depois prolongada até Rio Claro em 1876. Foi adquirida pela E. F. Rio-Clarense, em 1892, que expandiu a linha para bitola larga. Prosseguiu até São Carlos (1922) e Rincão (1928). Comprou a seção leste da São Paulo-Goiáz (1927) e expandiu a bitola larga por suas linhas. Atravessou o rio Mojiguaçu até Passagem e cruza o mesmo rio de volta até Bebedouro (1929). Seu destino é Colômbia, no rio Grande (1930). Em 1971 passou a ser controlada pela FEPASA e os trens de passageiros trafegaram pela linha até março de 2001 nos trechos entre Campinas e Araraquara. 

GATAI, Zélia. Anarquistas Graças a Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.


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