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33 - Causos sobre a família

Esta postagem é uma continuação da número 32 – Caipiras Graças a Deus.

Discorri anteriormente sobre a conversa com a Zenaide e contamos histórias do tempo da fazenda. Neste que segue vou falar da visita a minha tia Zulmira em Monte Azul, filha da Virginia Tiozzo e de volta a Colina, a visita as minhas tias Zica, Zilda e Isabel, todas noras de Virginia. Foram conversas interessantes visto que temos versões diferentes da mesma pessoa. E por fim as conversas com os tios Nego e Paulo, filhos dos meus avós Ângelo e Virginia.

Na casa da Tia Zulmira - Monte Azul

Na tarde de quinta-feira, dia 26/12/2019, depois de almoçar o escondidinho feito pela Idalina, pegamos o carro, passamos na casa da nossa prima Cistina, e seguiríamos para a casa da minha tia Zulmira em Monte Azul. Como fazia calor! O ar condicionado do carro parecia não vencer a temperatura! 

Assim que chegamos, minha tia me abraçou forte. Seu beijo lembrou o beijo da minha vó Virginia que nos beijava repetidas vezes, chorando, quando se despedia da gente, na volta para São Paulo. Minha tia se parece muito com a sua mãe. Os mesmos olhos azuis pequenos, quase escondidos atrás dos óculos. A casinha da minha tia, com seu atual marido, o Índio, é uma casa simples, limpinha e arrumadinha. O quintal estava varrido e a horta carpida. Ela fez bolo e café para nós. A mesma hospitalidade de sempre! 

Não demorou muito e começamos a relembrar os tempos em que ela vivia na fazenda. Eu usei como gancho o que minha mãe me contou, que minha tia começou a trabalhar na roça com cerca de 12 anos, quando minha mãe se casou com meu pai. Olhei para minha tia Zulmira e acrescentei: 

Imagino que a tia ficou muito brava com a minha mãe, porque ela te tirou do sossego de ajudar a vó em casa e a empurrou para trabalhar na roça.” 

Minha tia nem pensou duas vezes para dizer que eu estava errado: 

Mas eu gostava de trabalhar na roça!” 

Interessante, talvez como a minha prima Zenaide, ela gostava de trabalhar ao lado do seu pai. Talvez preferisse a roça a tentar satisfazer minha avó, incansável que era, em colocar as filhas e noras para trabalhar. Ela disse que fazia trabalho de homem. Meu avô, meus tios Nego, Paulo e Nadir tiravam o café do pé e deixavam os grãos no chão. Formava-se uma fileira interminável de grãos de café. Enquanto isso, ela junto com meu tio Evaristo, recolhiam, abanavam e colocavam os grãos em sacas. No final do dia, meu avô ia para o terreirão, os outros voltavam para casa, mas ela ficava com meu tio para deixar as sacas prontas para serem carregadas no dia seguinte.

Lembrou que um dia, logo depois do almoço, ela em vez de descansar, como os outros, saiu catando lenha para levar para casa na volta. Como de costume, deixou o feixe de lenha em um lado, junto com os embornais com as marmitas e moringas d’água que levariam para casa. Na volta pra casa, ela colocou o feixe de lenha na cabeça e seguiu caminho. Quando ela chegou na colônia, perto de casa ao lado da escada da cozinha, assim que jogou o feixe de lenha no chão, viu uma cobra jararaca saindo do feixe. Ate hoje ela pensa: 

O que teria acontecido se aquela cobra tivesse resolvido sair do feixe e descer pelo pescoço dela?”

Depois que chegava em casa, da roça, ainda ia tirar palha das espigas de milho para dar aos porcos. Depois tirava água do poço e enchia os regadores e ia aguar a horta de verdura. Enquanto isso, os irmãos dela ainda tinha energia para ir jogar futebol com outros rapazes da fazenda, ou então iam tomar banho antes da minha avó chamar para jantar.

O Toninho, seu filho, me disse que uma pessoa podia cuidar de até 4.000 pés de café. Algumas pegavam 6.000, mas para dar conta, durante a colheita, contratavam pau de araras para trabalhar até terminar o serviço e pagavam com o dinheiro do bolso. O Toninho, hoje com 50 anos trabalhou com seu pai na fazenda São Joaquim. Disse que ele ajudou a arrancar os pés de café da fazenda. Queimaram tudo. Plantaram algodão no lugar. Hoje plantam cana de açúcar.

O Toninho é cego de um olho. Ele me lembrou que chegou a ir para São Paulo e ficou na casa do meu pai uma vez e na casa do tio Augusto da outra vez, na tentativa de tratar o olho. Os médicos conseguiram um transplante de córnea para ele, mas depois repetiram os testes e descobriram que ele tinha o nervo óptico seco. Mesmo depois do transplante, ele não conseguiria enxergar, por isso acabou não fazendo. Mas isso não o impediu de trabalhar como motorista de trator por muito anos. Ele explicou que eles podiam fazer muito dinheiro com o café, mas ele logo se deixou levar pela bebida e acabou se tornando dependente. A bebida acabou com a vida financeira dele e o casamento também. O irmão dele, meu primo Odair, morreu aos 45 anos de problemas relacionados a bebida. O Fabio, o filho caçula da tia Zulmira ainda luta contra a adição. E fiquei feliz em ver que estão fazendo progresso. Lembrei do que o meu pai me disse sobre a época em que ele era jovem: 

Eu tinha 16 anos, mas eu era muito tímido! Eu não tinha coragem de convidar as moças para dançar! Meus amigos me incentivaram a beber e a fumar. Eu não gostava, mas fazia pare me sentir enturmado e para cativar as moças. Com 17 anos eu não precisava mais disso! Eu e meus amigos não se misturava com os rapazes da cidade, a maioria morava e trabalhava na roça.” 

Me chamou atenção o fato do Toninho, se corrigir mais de uma vez enquanto conversava comigo. Disse ‘qualquer’ e logo corrigiu dizendo: “O certo é qualquer, não é?”. Lembrei-me das aulas de linguística na pós-graduação. Existe a língua culta e a língua coloquial, que falamos em casa. A língua que ele e os habitantes da região de Colina utilizam para se comunicar é o dialeto caipira, a língua falada por uma vasta maioria de pessoas da região do interior paulista. São eles que ainda mantém vivo esse dialeto que vêm da língua geral. Interessante notar que no Vêneto, Itália, ainda hoje mais da metade da população fala o dialeto vêneto seja com a família ou com os amigos, e utilizam o italiano padrão no trabalho e ocasiões formais. Eu diria que a língua caipira, ou o modo de falar caipira é quase um dialeto que continua a ser falado entre os amigos e familiares no interior paulista.  Se um dia eu tive vergonha dele, hoje ainda é mantido vivo pela nova geração de paulistas. 

Eu mostrei fotografias antigas que tenho deles. Fotos deles crianças, minha tia solteira e depois de casada. Ela era moderna! Nos anos 70 usava calças compridas em uma época que poucas mulheres usavam. Hoje ela tem 72 anos de idade e continua moderna, forte e bonita. Estava com os cabelos tingidos e usava óculos estilosos! Logo foi hora de nos despedir.

Volta pra Colina

Na volta para Colina, viemos pela Rod. Renê Vaz de Almeida, a estrada de Monte Azul – Colina. Passamos em frente às porteiras de várias fazendas. Meu pai e meu avô moraram em algumas delas e várias tem nomes de santos: Fazenda Santa Helena, Santa Fé, São João, São Pedro, Corguinho, Paineiras, Carro Queimado, Retiro, Consulta, Bule, Suco, Governo e O Teto, a comunidade na entrada de Colina. Na entrada da Consulta para Monte Belo alcança-se as fazendas: Lagoinha, São José dos macacos, Caçula, Iracema, Os Marques e Santo Antonio. Saindo da estrada da fazenda Retiro, onde ficava a venda do Zapella, cruzando a Rodovia e seguindo em frente, vai-se as fazendas Palmital, Asinha, Fazenda Velha e Água Santa.  Algumas nem existem mais ou mudaram de nome. Perto do recinto da festa do cavalo temos a entrada para a fazenda do Governo e da fazenda Colina. Saindo de Colina em direção a Barretos há as seguintes fazendas: Santa Helena, São Joaquim, Santa Maria, Santa Paula. E ainda tem a Onça, uma das fazendas mais antigas de Colina.

        Paramos na primeira fazenda, a Santa Fé. Minha mãe se apresentou para uma mulher que mora lá e puxaram conversa. Elas tinham pessoas conhecidas em comum, inclusive a dona da fazenda. Quando eu disse a ela que vi alguns pés de café plantados na fazenda, ela explicou que são pés novos. Plantaram alguns pés ali perto da casa dela e havia outra plantação um pouco mais à frente. Não era monocultura. Hoje em dia eles tem máquinas que faz todo o trabalho que era feito por homens antigamente. Até máquina para limpar as fileiras eles têm. Há uma nova geração de cafeeiros na região de São Paulo.

Na casa do Tio Nego

No sábado foi dia de visitar o meu tio Nego. Seu nome é Vitalino Sarti e hoje ele mora em uma casa na cidade de Colina, mas morou e trabalhou por muitos anos nas fazendas ao lado do meu avô Ângelo. A casa do meu tio é cheia de gaiolas com canarinhos. Quando criança ele e meus pais faziam armadilhas e pegavam canarinhos da terra e outros pássaros para prender na gaiola. As gaiolas eram feitas por eles com tiras de bambu. Falou de um pássaro chamado Urutau que se camufla entre as arvores. O Bacurau também faz o mesmo. 

O Tio nego nasceu no Recreio, mas é registrado em Colina. Foi conhecer a fazenda Recreio depois de velho. Lembrou de ter visto a colônia e uma igrejinha, mas que já derrubaram tudo. Ele disse:             Quase todas as fazendas tinham uma igrejinha!”. 

Eu contei a ele que tínhamos ido até Dumont. Ele não sabia que seu pai havia nascido na fazenda Dumont que hoje é município. Ele lembra que havia uma estação de trem lá, ouviu falar, mas não viu. Sobre Terra Roxa, ele disse que é uma cidade encardida. Ele visitou uma fazenda chamada Floresta em Terra Roxa. Na época havia a colônia, mas já foi derrubada também.

Na região, hoje em dia, hoje se planta cana. Ele ia lembrando e falando: 

Mas depois que tira a cana, plantam soja ou milho, não dá para plantar cana de novo. Em Terra Roxa, uma fazenda chegou a dar 17 cortes. Mas em terra fraca, eles tiram 5 cortes.” 

            Sobre o café plantado na fazenda Santa Fé, meu tio explicou que na época dele os cafeeiros eram arvores grandes e altas. Eram plantados 4 metros distantes um do outro. Agora são pés menores, anões, e são plantados mais próximos um do outro, aproveitam mais a terra. Uma pessoa sozinha conseguia cuidar de 5.000 pés de café sozinho, sem máquina. Hoje com menos espaço, da para plantar mais cafeeiros e uma pessoa pode cuidar de mais pés. Mas também há máquinas que faz o serviço. Nos pés antigos, colocavam escadas. Eles batiam no pé de café para o café cair no chão depois recolhiam. 

Quando chovia era uma beleza, os grãos caiam fácil no chão, mas aí tinha que esperar secar para recolher. Tinha patrão que não gostava que faziam isso, mas tinha que fazer, mesmo escondido, senão não davam conta do serviço. Tem que saber bater para não danificar o cafeeiro.”

Ele carregou muitas sacas de cafés e feijão nas costas. Plantavam uma ou duas carreiras de feijão entre os pés de café. Os pés de feijão cresciam e chegavam acima dos joelhos de altura. Depois arrancavam as fileiras, colocavam no carreador para passar com o carrinho e pegar. Levava longe! Na fazenda Jangada perderam feijão. Acho que foi por causa da seca.  Eles não precisavam dividir os feijões que colhiam com o patrão se fosse colonos. O colono recebe salário. O valor é dado por cada mil pé de café mais o valor da saca de café. Eles tinham um salário mensal, mas no final do ano era feito o pagamento total, pelo valor de cada mil pé de café.

Chegaram a ser meeiros, ganhando porcentagem. No Palmital eles eram meeiros. A família do Ângelo tinha bastante gente, eles pegavam muitos pés de café. A florada é de julho até setembro. Dois meses depois é a colheita. No primeiro semestre, usavam o tempo para fazer outras coisas. Eles faziam trabalho na fazenda para o patrão e ganhavam por diária. Eles colhiam o café e levavam para o terreirão pra secar a parte deles e da fazenda. Depois mediam o café para fazer o pagamento. No Palmital eles secavam em frente a colônia porque não tinha terreirão. Eles, seu pai e seus irmãos, construíram uma tulha para guardar o café e proteger da chuva. Na Jangada também eram meeiros, em 1962. Eles fizeram contrato de porcentagem, meia (50%), mas faltou chuva e perdeu uma florada, os colonos falaram com o patrão e pediram para mudar o contrato. Passaram pra colono, até o final do ano. Aí acabou o ano, eles se mudaram para a fazenda Caçula. O vô Ângelo só foi empregado quando era colono, sempre foi autônomo. No final da conversa ele acrescentou: 

A gente era feliz e não sabia! Trabalha muito, mas era uma vida livre. A gente andava pela fazenda a noite sem medo. Se um dia não podia ir trabalhar, a gente não ia. Tinham mais liberdade!”

Zica, Zilda e Isabel – As noras de Virginia

Um tópico reincidente nas conversas das minhas tias e primas é minha avó Virginia, ou Dirce, como alguns a chamavam. Nesta viagem, não seria diferente, o assunto ‘sogra/nora’ veio à tona, às vezes espontaneamente, às vezes porque eu perguntei. Na casa de cada uma das minhas tias, falaram da sogra. Segue a versão das noras:

Na casa da tia Zica.

         Minha avó morreu no dia 25/09/1985. Dois anos depois de seu marido, Ângelo Sarti. Neste ínterim, ela morou com seu filho Evaristo e a nora Zica. Minha tica disse que minha avó, estava esclerosada, e não tinha noção das coisas. Ela gritava para os filhos, que já não estavam mais morando com ela: “Nego, vai tratar dos porcos, Paulo, vai rachar lenha, Nadir, vai aguar as verduras!” Era minha avó, que não deixava ninguém descansar um pouquinho. Tentei verificar se ela se lembra do trabalho na fazenda São Joaquim, mas ela se lembra de muita pouca coisa. 

Meu avô mudou-se da fazenda Palmital para a fazenda São Joaquim, em Colina, em 1975. A Marlene, minha prima, hoje com 45 anos mais ou menos, cresceu naquela fazenda e parece lembrar-se de mais coisas do que minha tia Zica, sua mãe. Por exemplo, a Marlene mencionou que na fazenda São Joaquim, havia plantações de algodão e café, depois arrancaram o café e plantaram cana de açúcar no lugar. A tia Zica acha que foi a geada que matou os cafeeiros. A Marlene lembra que cortaram os pés de café, mas eles brotaram novamente. Isso deve ter sido já perto da época quando foram embora da fazenda. (Foto1: Evaristo e Zica quando ainda moravam na fazenda São Joaquim. Foto 2: Zulmira, meu avô Ângelo e eu, na fazenda São Joaquim em 1981) 

Na casa da tia Zilda

Depois do almoço, eu notei uma cabaça pendurada no alpendre, usada como decoração. Eu lembrei que a cabaça, também conhecida como porongo, era usada na roça pelos colonos imigrantes. Minha tia disse que a planta da cabaça é uma espécie de trepadeira, dava no chão, como abóbora. Às vezes ela trepava na cerca ou alguma árvore e as cabaças ficavam penduradas. Eles usavam para colocar água e levar na roça. A água ficava fresquinha.

        Assunto vem e vai e minha tia Zilda lembrou que ainda tem uma concha e uma panela que era da vó Dirce. Ela tirou do armário e colocou sobre a mesa para vermos. São de alumínio fundido, grosso e pesado. Minha avó usava a panela no fogão a lenha. Elas areavam as panelas com areia, por isso se chama arear. Minha mãe comentou que ia até o baixadão pegar areia branca e fina para isso. Para lavar louça e arear panelas, a Zenaide molhava a bucha da planta, bucha vegetal, que nascia no mato, minha mãe usava palha de milho. Para arear as panelas, usavam sabão, colocavam areia e passavam nas panelas e tampas. Era costume usar a bucha vegetal ou palha de milho para tomar banho também. Quando a Zilda se casou com meu tio Paulo, o caçula da Virginia, já havia palha de aço Bombril, mas a minha avó continuava a fazer as coisas do ‘jeito antigo’, ou seja, da mesma forma que ela sempre fez. Ela não queria mudar a maneira de fazer as coisas.  Minha tia lembrou das coisas que ela fazia em casa, como amassar e assar pão, lavar roupa na mão, sem máquina de lavar roupas. Elas tinham que puxar água do poço e lavar na bacia. Também tinham que torrar o café. E então acrescentou: 

            A vó tadinha...tabalhava muito!”

 Zenaide disse que amava torrar café. Isso porque pela tradição, quem torrava o café não podia se molhar, ou seja, não podia tomar banho, lavar louça, nem beber água. Ela pedia para a mãe dela deixar ela torrar o café, porque assim ela se livraria de lavar a louça naquele dia. “Como faziam?” - Eu quis saber. 

Colocavam o café no torrador. O torrador é cilíndrico com uma portinha, como uma gavetinha na abertura para colocar os grãos de café dentro. A Zenaide empilhava os tijolos, um em cima do outro e fazia duas pilhas, uma do lado da outra. No meio colocava lenha e fazia uma fogueira. O último tijolo era colocado de quina, para fazer um gasto nele, para a parte do cabinho do torrador encaixar nele. Ela se sentava no chão e girava o torrador. Ficava um tempão fazendo isso! Cheirava de longe! Depois de torrado, guardavam o café torrado em um pote. Na hora de fazer o café, moíam na hora em um moinho manual. Minha mãe moía o café à noite, porque ele não gostava de fazer barulho de manhã. (foto torrador de café)

Sobre o trabalho de casa, a Zenaide disse que elas lavavam a louça todo dia depois da janta. Não havia pia com torneira. Lavavam usando duas bacias que ela e a Esmeralda colocavam no rabo do fogão. A Zenaide lavava e a Méria (Esmeralda) enxaguava. Depois tinham que guardar. Só depois disso elas podiam ir brincar. A tia Zilda, depois que se casou, foi morar na fazenda São Joaquim e lá, teve que fazer tudo isso sob o comanda da sogra, minha avó Virginia.

Na casa da tia Izabel e do tio Nego

        Esta parte eu procurei deixar exatamente como foi a conversa. Foram nove minutos de gravação, mas eu mantive aqui apenas a parte que se refere a minha avó Virginia. Neste dia estavam presentes meu tio Nego, a tia Izabel (mulher dele), a Erica (neta da Virginia), Maria Sarti (minha mãe) e Idalina, (minha prima, filha do meu tio Antônio Sarti) além de mim, naturalmente.

    Alguém começou a falar da minha avó. Não foi um comentário propriamente positivo. Eu queria ouvir a versão do meu tio e perguntei o que ele tinha a dizer sobre a relação da mãe dele com as noras. Sua resposta foi:

Tio Nego: “Não sei se tinha alguma coisa que a gente não via, alguma coisa entre ela e as noras. Talvez ela achava que tinha que ser de um jeito, né!”

Eu: “Mas uma coisa é certa. A vó era muito trabalhadora, não é?”

Nego: “Oh loco!”

Eu: “Não parava. Que hora ela levantava?”

Nego: “Minha mãe ficava até meia noite remendando roupa e às cinco horas do outro dia já tava de pé de novo.”

Eu: “Não dormia então?”

Idalina: “Muito pouco!”

Nego: “E quando ela ainda ia trabalhar na roça então! Na colheita do café, ela ia na hora do almoço e ficava lá até a hora do café, umas três ou quatro horas da tarde. Depois ela voltava pra casa pra arrumar a janta.”

Eu: “Final de semana tinha descanso?”

Nego: “Imagina! Lavava roupa na mão. Puxava água na mão. Fazia pão, tudo na mão.”

Idalina: “A vó judiou da mãe. Sabe por quê? A mãe tinha que fazer o almoço e levar na roça.”

Nego: “Todo mundo fazia!”

Idalina: “Tudo bem, maasss, a mãe pra comer.... a vó regulava a comida dela.”

Nego: “Era o sistema daquele povo. Eu lembro até hoje, quando nois era criança. A Maria talvez até saiba dizer. Era o sistema do povo antigo. Tinha galinha lá, o ovo não era comprado, mas era um ovo repartido no meio, meio pra um, meio pro outro.”

Idalina: “Vocês acreditam? Um ovo repartido no meio?”

Nego: “Mas, era o jeito deles! Não é que ficava regulando. Era umas pessoas que não jogava comida fora. ... Alface, uma folha, duas folhas de alface pra cada criança, só que era umas foiona né! E tinha horta!”

Maria: “Mas quando eu casei, vocês gostaram, sabe por que? Por que na sua casa, levantava de manhã, tomava um golinho de café e  ia pra roça. Quando eu casei, eu era acostumada a comer pão com café. Eu falei pro Reinaldo, eu quero pão com café. O Reinaldo disse pra sua mãe: ‘A Maria é acostumada a comer pão com café.” Ai ela falou: ‘Então deixa ela comer o pão.’ E ai todo mundo começou a comer pão. Pelo menos pra alguma coisa boa eu servi!”

(...)

Nego: “Então Maria, era o costume deles!”

                Então surgiu o assunto sobre a surra que a minha avó deu em sua vizinha. Até então eu tinha a versão do meu pai. A versão que ouvi da minha mãe foi um pouco diferente e a do meu tio Nego também. Este é um exemplo de como uma história se transforma com o passar do tempo! A conversa foi assim:

 Maria: “O Reinaldo contava pra gente que tinha uma tal de Marion, sei lá quem era, e ela [a vó Virginia] cismou que a mulher tava dando em cima do vô. Um dia ela foi lá e pediu pro Reinaldo e Tuim (Antonio): ‘Eu vou lá pegar ela pelos cabelos e vocês vão chutar ela!’”

Nego: É sobrinha dela! Sobrinha do meu pai! Da costureira ali, a Melhia (Amélia), minha mãe contou isso aí. Mas não era ciúme não. Ela fazia muita fofoca pro meu pai pra ver se meu pai batia na minha mãe.”

(...)

Nego: “Diz que meu pai [Ângelo] gostava muito de ir no baile nas fazenda e deixava ela [Virgínia] em casa sozinha. Ele largava ela grávida em casa e ia pro baile. E ela tinha ciúme, achava que ele ia atrás de outra mulher.”

Maria: “Eu tenho dó, porque a vó não era uma mulher de sentar. E a ela queria que a gente [as noras] fosse igual.”

Nego: “Ela foi criada daquele jeito. .... e sabe de uma coisa? Minha mãe falava que depois que ela casou, ela nunca foi visitar os pais dela.”

Maria: “Mentira. Ela foi. E sabe onde o pai dela morava? Sorocaba.”

Izabel: “Ela falava que era sorocabana.”

Eu: “Sorocabana era a linha do trem. O pai dela nunca morou em Sorocaba. Eles foram pra região de Presidente Prudente.”

Izabel: “Ela dizia: ‘eu casei, nunca mais eu vi meu pai!’”

Nego: “Por quê? Porque era um povo diferente. Se ela não podia ir lá, ele não podia vir também?”

Eu: “Mudou alguma coisa? A gente ta falando pra ele [Nego] ir pra São Paulo ver o irmão dele, [Augusto] e ele não quer ir, disse que é longe. E hoje dá pra ir de ônibus, com ar condicionado. Naquela época era de trem, Maria fumaça.” 

Conversa entre tio Paulo, eu, Idalina e Zenaide (28/12/2019)

        No dia em que almoçamos na casa da tia Zilda, meu tio Paulo, não estava lá. Precisou trabalhar. Ele já está aposentado, mas ajuda seu filho Vagner na barbearia. Ele veio até a casa da Idalina, no último dia de nossa visita. Voltamos a falar sobre a família e a lembrar dos assuntos relacionados a ela. Foram vários tópicos.

Nós morávamos na fazenda Jangada em janeiro de 1962, quando eu nasci. A família do vô Ângelo foi para a fazenda Caçula em setembro do mesmo ano. O Gusto (Augusto) deve ter ido para São Paulo em 1963. Quando ele foi pra São Paulo, ele já estava namorando com a Célia [Zapella]. Minha mãe disse que quando meu tio Augusto se mudou pra São Paulo, ele foi morar com o Nêne. Logo depois arrumaram serviço pra ele. Quando meus pais foram para São Paulo, ele era ainda solteiro. Uma vez a vó Dirce foi com a Célia para São Paulo visitar o tio Gusto. A tia Célia ficou com medo dele arrumar namorada por lá. Demorou um pouco ainda até eles se casarem. O Tio Gusto arrumou casa, comprou móveis e veio buscar a Célia. Casaram-se em Colina. A Idalina lembra do casamento e do vestido da tia Célia. Ela tinha vontade de passar a mão no vestido dela, mas não podia, porque todo mundo vinha em cima. Pelos meus registros, eles se casaram em 1966. (foto do casamento)

A vó foi mais de uma vez pra São Paulo futuramente. O Paulo foi uma vez com o pai dele. A vó voltou para São Paulo para buscar a Zenaide que estava morando em nossa casa em Mauá, região metropolitana de São Paulo. Minha mãe recordou que quando a Zenaide morou conosco em São Paulo, ela foi para estudar corte e costura. Ela tinha por volta de quinze anos de idade. A Zenaide queria trabalhar lá, mas o meu pai, Reinaldo, disse que sem autorização do Antonio, pai da Zenaide, ela não iria trabalhar. A minha mãe veio com a Silvio para Colina para falar com o tio Antônio sobre esse assunto, mas ele não deu autorização e ainda pediu para a Zenaide voltar pra Colina. Minha avó, Virginia voltou com a minha mãe e a Silvia para São Paulo para trazer a Zenaide de volta. A Idalina questionou minha mãe:

Porque a senhora não trouxe a Zenaide em vez de vir pra cá, levar a vó e a vó trazer ela?”

Minha mãe explicou que a Zenaide não queria voltar pra Colina. Ela queria autorização para trabalhar em casa de família e o meu pai pediu para a minha mãe vir até Colina para falar com o tio Antonio. Eu perguntei então:

Nossa, não tinha carta naquela época?”

Minha mãe lembrou que para voltar para São Paulo, minha mãe e a avó passaram uma noite na casa da mãe da tia Célia em Colina para pegar o trem cedinho que ia pra São Paulo.

Paulo: “Eu lembro que minha mãe foi pra Terra Roxa uma vez. Foi fazer o que? Eu não lembro! Eu chorei tanto!

Passado algum tempo ele deve ter lembrado o motivo e continuou:

O Zé, filho da tia Néle, foi operado da úlcera e morreu. Irmão do Luiz, ela é irmã da vó Virginia. Ela morava em Terra Roxa.”

Meu tio continuou a falar, à medida que lembrava de coisas:

Minha mãe tinha zipela [erisipela] na perna.”  

A Zenaide acrescentou que as peles soltavam da perna da vó e quando isso acontecia, ela pedia para a Zenaide cortar com uma tesoura. Mas a Zenaide não tinha força para isso.

Eu queria confirmar se meu avô Ângelo sabia escrever. Perguntei para o Paulo e ele confirmou que o Ângelo sabia, mas minha avó Virginia não e acrescentou:

Ele deve ter estudado só um ano na escola. Eu lembro da letra dele, era muito bonita, desenhada!”

Eu acho uma pena que ninguém da família tenha se preocupado em guardar cartas ou documentos dele!

Voltamos um pouco no tempo. No final de 1961 a família do meu avô Ângelo mudou-se da fazenda Retiro para a fazenda Jangada. Paulo lembra que várias das famílias da fazenda Retiro foram para Jangada porque tinha um café bom ‘pra caramba’ lá. A Zenaide lembra dessa mudança. Ela e o tio Tonho [Antônio] foram juntos para ajudar na mudança. A Zenaide foi na carroceria do caminhão, sentada sobre uma fileira de sacos de café. A fazenda era longe, pra lá de Barretos e passaram por cima de uma ponte que era alta, e o trem passava por baixo. Era um perigo o caminhão passar lá porque podia cair lá embaixo!  

O Paulo disse que ia dar um ano ótimo [pro café], mas as expectativas foram frustradas. Paulo acha que foi uma geada, o Nego acha que foi falta de chuva, o certo foi que o café não foi bom. Em outras palavras, foi um ano ruim de colheita e consequentemente ruim economicamente para os colonos e para o patrão. Consequentemente, no ano seguinte saíram de lá. A família do Ângelo Sarti e mais algumas famílias foram para a fazenda Caçula, o Tininho Zanon foi pra Paineira.

Eu disse que tinha conhecido o Laércio Zanon na oficina do meu primo Toninho. O Paulo explicou que o Laércio é filho do Tininho. Lembrei que o tio Nego disse que o patrão da Jangada gostava do pessoal e fez outras propostas, tentando convencê-los a ficar, que eles não iam perder aquele ano, mas não adiantou, eles não ficaram na Jangada. Eu brinquei:

Pelo menos este acontecimento serviu para eu nascer em Barretos em vez de Colina!”

Minha mãe disse sobre o dono da fazenda Jangada:

O patrão, ele era muito bom mesmo. O Antonio [um colono, não meu tio] aceitou a proposta do patrão e não saiu. Ele ficou lá porque a mulher dele teve gêmeos. E o patrão dava o leite de graça pra ele cuidar da criança, e ele ficou lá. Ele achava que ele devia muito favor pro patrão pra já ir embora, então ele ficou.”

O Paulo disse que as mudanças de uma fazenda para outra eram feitas geralmente em setembro. Deve ter relação com a época de colheita, imagino eu. Sobre a mudança da fazenda Jangada para a fazenda Caçula, minha mãe adicionou:

A mulher do Tunicão era Schiarelli. Ela veio na frente [cabine do caminhão] pra me ajudar a cuidar das crianças [Luiz a Elza].”

O Paulo lembra que, não sabe o porquê, que cargas d’água, ele e o Nego rasparam a cabeça. Talvez por causa de piolho, que era muito comum. O tio Gusto cortava cabelo e ele rapou a cabeça deles. Um dia, eles vieram da fazenda pra Colina em cima de um caminhão, na carroceria. O Paulo estava usando uma paetinha (chapéu de palha), bateu um venho e levou a paetinha embora. Ele acrescentou: “Nooosssaaa! A orelha já era pequena (só que não) e o cabelo cortado na máquina zero. Eu passei muita vergonha!” – A Zenaide admirou-se, pois o seu pai, o Tuim era o barbeiro da família. Depois meu tio Paulo também aprendeu e acabou abrindo uma barbearia em Colina. Mas o tio Paulo disse que o tio Gusto também sabia cortar. Eles tinham uma cadeira marrom, ele cortava usando aquela cadeira!  Hoje em dia, os dois filhos do meu tio Paulo, Bruno e Wagner são autônomos e cada um tem uma barbearia em Colina.  

Conclusão:

Como eu mencionei no início da postagem anterior, através do diálogo é possível construir esta crônica familiar. Por serem acontecimentos muito antigos, não dá para precisar se são fatos ou imaginação das pessoas que os contaram. Não tentei embelezar as histórias. Nossa família não é perfeita e algumas histórias aqui mostram isso. Nos parágrafos anteriores, eu me dediquei a descrever as minhas memórias como também de outras pessoas da família, e dessa forma, reconstruir a rica experiência que tivemos nos nossos passeios e principalmente da vida da minha família que permaneceu no interior paulista. As histórias contadas por outros membros da família nos dão pontos de vistas diferentes dos mesmos objetos e acontecimentos. Elas aumentam, explicam e enriquem os fatos e minhas observações.


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Quando eu perguntava ao meu pai:  “ De onde vieram os seus avós ?” Eu esperava a seguinte resposta: “ Eles vieram de uma cidade chamada Castelguglielmo, que fica na província do Vêneto na Itália. ” Mas como disse antes, a resposta era simplesmente: “ Da Itália !” Depois de montar um verdadeiro quebra-cabeça eu finalmente cheguei à cidade onde Giacomo Sarti, meu bisavô nasceu: Castelguglielmo .      O membro mais antigo da família a que eu cheguei, rastreando registros de óbitos, casamentos, batismos e nascimentos foi Giovanni Sarti meu tetravô (tataravô). No site do FamilySearch descobri que ele foi casado com Cattarina Romanieri. Um dos filhos do casal foi Giuseppe Sarti, meu trisavó. Seu filho foi Giacomo Sarti, meu bisavô, que emigrou da Itália para o Brasil. Giuseppe Sarti e Luigia Munari moravam em Castelguglielmo quando Giacomo Sarti nasceu no dia 29/11/1864. Na lista di leva de Giacomo Sarti indica que ele nasceu nesta cidade, pois ali consta que a ‘ comune de inscrizione ’ é C

12 - A Mesopotâmia italiana

A palavra mesopotâmia quer dizer ‘terra entre rios’. 1 Aqui refere-se a uma área específica no Vêneto, Itália chamada Polesine (pronuncia-se Polésine), importante em nossa história, pois nela encontra-se a maior parte das cidades onde nasceram, viveram e morreram alguns membros das famílias Sarti, Feltrin e Tiozzo. Nos documentos destas famílias encontramos a menção das seguintes cidades: Bagnolo de Pó, Castelguglielmo, Carvazere, Chioggia, Fratta Polesine, Lendinara, Ramadipalo, Rovigo, San Bellino, e Veneza, todas no Vêneto.  A Polésina é um território situado ao norte da Itália entre os trechos finais de dois rios importantes, o Ádige e o Pó. Além desses dois rios ainda há o Tártaro-Canalbianco, o Adigetto, uma derivação do Ádige, o Ceresolo, um canal artificial de 50 km usado para irrigação e uma densa rede de canais de drenagem. Os rios, lagoas e pântanos ligavam as comunidades próximas, garantiam abastecimento de água e alimentos. Por isso, as primeiras áreas habitadas surgiram

29 - Reinaldo Sarti: Uma biografia

A biografia de meu pai é baseada em uma entrevista que fiz com ele. Durante vários dias me sentei e pedi para ele me contar o que lembrava de sua vida, desde a primeira lembrança e os acontecimentos que marcaram seus anos. Anotei tudo, e depois com calma reescrevi ajustando as informações as que eu já sabia, datas de documentos e fotografias.  Para os desavisados, esta postagem foi escrita como se Reinaldo Sarti estivesse, ele mesmo contando sua história, portanto está na primeira pessoa do singular e em registro coloquial. Durante a leitura, convido o leitor a imaginar sua voz e fazer a viagem com ele .  Fazenda Recreio (1937-1940)  “Quando eu nasci, meus pais moravam na fazenda Recreio em Colina. Eu nasci em casa com ajuda da parteira, no dia 25 de novembro de 1937. Minha mãe tinha uns 26 anos e meu pai uns 30. Ela se chamava Virginia Tiozzo e era filha de italianos. Meu pai também era, mas eu não sei de onde na Itália. Eu tinha dois irmãos, o Antonio e o Geraldo. O Antonio é de