A biografia de meu pai é baseada em uma entrevista que fiz com ele. Durante vários dias me sentei e pedi para ele me contar o que lembrava de sua vida, desde a primeira lembrança e os acontecimentos que marcaram seus anos. Anotei tudo, e depois com calma reescrevi ajustando as informações as que eu já sabia, datas de documentos e fotografias.
Para os desavisados, esta
postagem foi escrita como se Reinaldo Sarti estivesse, ele mesmo contando sua
história, portanto está na primeira pessoa do singular e em registro coloquial.
Durante a leitura, convido o leitor a imaginar sua voz e fazer a viagem com
ele.
Fazenda Recreio (1937-1940)
“Quando eu nasci, meus pais moravam na fazenda Recreio em Colina. Eu
nasci em casa com ajuda da parteira, no dia 25 de novembro de 1937. Minha mãe
tinha uns 26 anos e meu pai uns 30. Ela se chamava Virginia Tiozzo e era filha
de italianos. Meu pai também era, mas eu não sei de onde na Itália. Eu tinha
dois irmãos, o Antonio e o Geraldo. O Antonio é de 1932, então ele tinha cinco
anos e o Geraldo dois anos.
Minha primeira memória? Deixa-me pensar! Eu me lembro
da minha mãe cortando toicinho de porco em uma tábua. Eu ficava espiando e
esperava ela sair de perto da mesa pra fazer outra coisa, ai eu corria lá na
mesa, levantava os pesinhos para alcançar a mesa e pegava um pedaço de toicinho
escondido, colocava na boca e comia disfarçando, pra ela não ver. Às vezes ela
via e me dava bronca.
Fazenda Aparecida (1940)
Em 1939 o meu avô Jacomo e dois filhos dele, o Marcelo
e o Ângelo se mudaram pra fazenda Aparecida. Eu tinha uns dois anos e meio na
época. Da fazenda Aparecida, eu me lembro de ter matado uma pombinha com um
estilingue. Mais isso foi depois de um ano tentando! Eu devia ter uns quatro
anos de idade. Era comum entre as crianças matarem passarinhos com estilingue,
todo mundo fazia isso!
Num espaço de um ano, entre 39 e 40 morreram três
pessoas na nossa família. Primeiro foi o Vitório, filho do meu tio Marcelo. Ele
morreu jovem, tinha uns 35 anos de idade, enquanto ia de casa para a roça levar
almoço pro meu pai e o pessoal que trabalhava com ele. Depois foi meu avô, o
Jacomo, e a Aparecida, minha irmã. Eu tinha um ano e meio de idade. Foi um ano
de seca e o meu pai, desgostoso com tantas lembranças ruins e também por causa
do prejuízo com a plantação de algodão, resolveu voltar para a fazenda Recreio
onde eu tinha nascido.
Fazenda Recreio (1940-1945)
Na fazenda Recreio, a sede da fazenda era isolada, e ficava mais ou menos
um quilômetro da coloninha e uns quinhentos metros da colônia velha. A nossa
família morava na coloninha onde tinha apenas quatro casas, três paineiras e um
campo de futebol. As casas eram construídas germinadas e em cada casa morava
uma família. As casas eram pintadas de amarelo escuro. Na colônia velha, havia vinte
grupos de casas, e cada grupo tinha duas casas germinadas. Não havia forro e a
parede que dividia uma casa da outra não chegava até o teto. Ninguém tinha privacidade!
Não tinha escola na fazenda Recreio. Quando o Antonio, meu irmão tinha uns doze anos, ele ia da coloninha até a colônia velha na casa de um senhor que ensinava as pessoas que moravam na fazenda a ler. Ele aprendeu a ler à noite, depois de trabalhar o dia todo na roça. O Geraldo, que era três anos mais novo que o Antonio, começou a acompanhar ele e a estudar também.
O meu pai, Ângelo sabia ler pro gasto, o suficiente.
Ele gostava de escrever cartas e tinha uma letra muito bonita! Mas ele era ruim
em matemática e se atrapalhava com os números. Em 1945, eu já tinha oito anos e
ainda não sabia ler nem escrever. Meu pai queria que os filhos aprendessem a
ler e por isso, preocupado que já passava da hora d’eu aprender resolveu voltar
para a fazenda Aparecida, onde tinha uma escola. (Fotografia: Antonio e Geraldo)
Fazenda Aparecida (1945 – 1947)
No meu primeiro dia de aula, eu vesti o uniforme: calção azul-marinho com
suspensórios e camisa branca. Mas eu não tinha sapatos e ia descalço para
escola. Foi minha mãe que costurou o uniforme na máquina manual que tinha em
casa. A camisa era feita com o saco de farinha que era alvejado para ficar
branco. O Geraldo, meu irmão já tinha dez anos e ia junto comigo. Eu me sentia seguro
ao lado dele! No caminho entre a casa e
a escola, a gente se juntava a um grupo de meninos e ia caminhando por uns
quatro quilômetros a pé passando por um pasto onde havia vacas mansas.
Mas, voltando da escola, quando as vacas estavam
perto da estrada, os meninos procuravam pela maior pedra que podiam encontrar e
atiravam na testa das vacas pra fazer elas desmaiar. A gente não tinha dó dos
animais! Tinha um mangueirão1 nos fundos da casa, um tipo de cercado
longo e estreito que corria paralelo às casas da colônia. Nele tinha um coxo
para os porcos tomarem água e muita lama em volta dele. Os meninos saiam
correndo atrás dos porcos. Assustados, eles corriam atropelando os leitões.
Alguns porquinhos afundavam na lama e ficavam apenas com a cabeça pra fora. De
vez enquanto alguns morriam e o resultado era uma boa surra.
A escola só tinha uma sala. Era praticamente um
cômodo grande de uma casa. Tinha um quadro negro e a professora usava giz
branco para escrever na lousa. As carteiras era grande suficiente para dois
alunos sentar e em cada carteira tinha um pote de tinta preta onde os dois
alunos molhavam a pena para escrever. O que eu mais odiava era que pingava
tinta da caneta e borrava o caderno e a carteira! Às vezes, um aluno distraído
batia a mão no pote de tinta que caia no chão lambuzando tudo em volta. Havia
uns trinta alunos na sala, e as turmas eram mistas, meninos e meninas. O nome
da professora era Hebe Toledo e ela vinha de Colina para ensinar na fazenda. Era
só uma sala, mas eu acho que tinha alunos de séries diferentes: primeira,
segunda e terceira.
Depois que eu voltava para casa da escola, ás vezes eu
ajudava minha mãe a cuidar dos meus irmãos mais novos, a Nega (Lourdes), o Gusto
(Augusto) e o Varisto (Evaristo) ou então eu ia até a roça ajudar o meu pai e o
Antonio. A Nega tinha uns cinco anos, o Gusto três e o Varisto um ano de idade
ou menos.
O que aprendia na escola? Eu me lembro de ir até a
frente da sala recitar poesias. Mas logo eu aprendi com os outros meninos a
aprontar. Havia um caminho que dava na escola. A gente corria na frente,
amarrava o capim de vassoura2 e voltava. Ai um de nós gritava bem
alto: “Tocou o sino. Tamo atrazado. Vamos
correr!” Os meninos saiam correndo na frente e deixavam as meninas pra
trás. A gente pulava a vassoura e as meninas caiam. A gente parava e caia na
risada!
No recreio a gente brincava de esconde-esconde e
pega-pega no colonião3, um tipo de capim parecido com cana. Dois
filhos do patrão, um casal, estudavam junto com a gente, os filhos dos colonos.
Mas eles iam bem vestidos, com meia e sapatos, bolsa de couro e tinham material
bom: caderno, livros, canetas. Eles falavam diferente da gente, por exemplo: ‘melhor’ em vez de “meior”. Um dia a gente resolveu aprontar com o filho do patrão.
Tinha uma cisterna de três metros de profundidade perto da escola. Eu e meus
colegas cobrimos a boca da cisterna com mato e chamamos todo mundo pra brincar
de pega-pega, inclusive o garoto almofadinha. Corremos em direção à cisterna
com ele atrás da gente. Eu olhava pra trás e chamava ele: “Vem, vem, corre, corre!” Quando chegou pertinho da boca da cisterna,
nós pulamos o capim. Ele não sabia de nada e caiu lá dentre. No começo foi
muito divertido e a gente riu muito. Mas pra ele não foi nada divertido! Ele
não conseguia sair, começou a chorar e a gritar desesperado. A professora teve
que chamar alguém da fazenda para tirar ele lá de dentro. Depois que ele saiu,
o menino teve um acesso de choro e disse que ia contar tudo pro seu pai. A dona
Hebe ficou muito brava: “Quando descobrirem
quem fez isso, a família vai ser expulsa da fazenda!” Eu fiquei apavorado,
mas ninguém nunca delatou ninguém. Nunca aconteceu nada!
Na volta da escola pra casa, a gente passava por um
rio que enchia um pequeno açude. A gente mandava as meninas ir na frente. Elas
não queriam, a gente insistia. Depois a gente tirava as roupas e nadava pelado.
Elas esperavam a gente entrar na água e depois voltavam para espiar a gente.
Depois elas corriam pra casa e contavam para os nossos pais. Quando a gente chegava
em casa, apanhava das mães. Um dia, eu quase morri afogado, mas nunca contei
pra minha mãe! Meus pais queriam que a gente fosse direto pra casa depois da
escola pra cuidar dos irmãos caçulas. Se os menores estivessem dormindo a gente
tinha que tirar palha do milho ou debulhar milho pras galinhas. Às vezes eu ia procurar
vassoura no mato para minha mãe Virginia limpar o forno.
Eu gostava da minha professora, a Dona Ebe Toledo,
filha do administrador. Ela foi a única professora que eu tive, nos quase três
anos que eu estudei. Mas eu pequei raiva dela!
No final do ano, depois do exame final era hora de saber quem tinha
passado de ano. A professora pedia pra gente fazer uma fila. Ela chamava os
alunos por nome. Os que passavam de ano, iam pro lado direito, os que repetiam
iam pro lado esquerdo. Ela chamou o meu irmão, Geraldo e disse: “Você passou. Vá para a direita!” –
Depois chamou o meu nome. Eu olhei pra ela, ansioso esperando o que ela ia
dizer! Eu não levava as aulas à sério. Eu brincava muito nas aulas, e dava
muito trabalho pra ela. Mas tinha esperança! Ela olhou bem pra mim e disse: “Reinaldo, você passou....”. Ela fez uma
pausa. Eu olhei pra ela sorrindo. Mas logo em seguida ela acrescentou: “... passou na porta!” – Todo mundo riu de
mim. Eu fiquei muito bravo e fui pra casa chorando com medo de contar pro meu
pai. Ele não deve ter ficado muito bravo porque eu não me lembro da reação
dele. Se ele tivesse ficado bravo comigo, eu com certeza me lembraria até hoje!
No segundo ano, Geraldo passou de ano, eu não, ainda assim, continuamos a
estudar juntos no ano seguinte.
Meu pai era muito severo e rígido com o trabalho e os
horários. A gente almoçava às 8h30 da manhã. Quase todo dia era arroz, feijão,
ovo, linguiça ou frango. Na janta tinha minestra: caldo de feijão com arroz e
uns pedaços de linguiça. No Natal ou Páscoa tinha macarronada. Lá pelas 12h30 a
gente comia polenta com leite. As mulheres ou os meninos levavam na roça para o
pai e quem tivesse ajudando na roça.
À noite, logo depois do pôr do sol, a família se
juntava para o jantar. Eu fazia hora pra comer! O meus irmãos mais velhos, o
Antônio e o Geraldo, comiam rápido e ao terminarem saiam da mesa. Eu queria ir
com eles para brincar de esconde-esconde com as crianças da colônia. Lá tinha mais
de 30 crianças entre 8 e 15 anos. Em noites quentes os meninos maiores iam
nadar no açude.
Um dia o patrão mandou cavar um canal de água que
cortava a colônia em perpendicular. Depois que abriram a valeta, os empregados
começaram a erguer uma cerca para cercar o canal. Eles estiraram o primeiro fio
de arame farpado na parte de cima da cerca. Quando começou a escurecer, eles
pararam o serviço pra continuar no outro dia. Naquela noite, eu comi rápido
para ir brincar com os meninos da colônia. Antonio e Ângelo terminaram primeiro
e saíram. Eu nem pensei, levantei da mesa pra ir atrás deles. Meu pai agarrou o
meu braço e ordenou: “Termina a comida
que tá no prato!”. Eu nem era louco de desobedecer a ele. Eu voltei a
comer, mas com pressa praticamente engolindo a comida sem mastigar direito. Meu
pai, que já devia estar nervoso com alguma coisa, disse pra mim: “Come devagar!” Eu dei mais umas garfadas
e sai da mesa correndo, ainda mastigando tentando alcançar os meus irmãos mais
velhos. Era quase noite, eu não me lembrei da valeta e não vi o arame farpado
que estava estirado entre as estacas de madeira. Resultado: fiquei preso pelo
pescoço. Eu gritava chorando pedindo socorro, que alguém me ajudasse! Meus pais
e outras pessoas da colônia ouviram os meus gritos. Meu pai saiu de dentro de
casa e veio correndo até onde eu estava. De repente, eu senti um chute no meu
traseiro. Foi a forma que ele achou pra me ajudar a se desvencilhar do arame.
Até hoje eu tenho a cicatriz embaixo do queixo.
Minha mãe, como sempre chorou muito. Ela só chorava! Talvez
por causa da incompreensão do Ângelo, saudade dos seus pais ou de algum filho
que tinha morrido! Talvez fosse depressão, mas ninguém sabia o que era
depressão naquela época!
Fazenda Recreio (setembro 1947-1952)
Em setembro de 1947 nasceu minha irmã Zumira. Me lembro que eu e o Antonio
fomos correndo, a pé, até a fazenda vizinha chamar a parteira, a dona Francisca
Tavilha. A Zumira era ainda recém-nascida quando a gente se mudou da fazenda Aparecida
para a fazenda Recreio. Eu tinha onze anos de idade, então deve ter sido no
final de 1947. Durante a mudança, eu fui encima da carroça que era puxada por
cinco burros. Eles colocavam a quaieira 2 no pescoço dos burros, o selote nas
costas pra prender o espinhaço pra puxar o carro. Os burros eram usados para
carregar o mais pesado. Para carga mais leve usava a canga.4 Era um
comboio de três carroças e tiveram que fazer várias viagens pra levar tudo de
uma fazenda até a outra.
De volta a fazenda Recreio, fomos morar na coloninha. Não tinha escola na fazenda, por isso não
tinha como eu continuar os estudos. Eu comecei a estudar a noite com um senhor,
aquele que ensinou o meu irmão Antonio a ler. Ele não era professor, mas era o
que sabia ler melhor na fazenda. Durante o dia eu passei a levar o almoço na roça
para o meu pai e meus irmãos mais velhos, Antônio e Geraldo. Eles trabalhavam no
café na fazenda Recreio. Entre as ruas, tinha dois metros entre uma fileira e a
outra. Nelas eles plantavam feijão, milho e arroz. Na volta da roça, eu trazia
um feixe de lenha na cabeça. Na casa que a gente morava da coloninha, tinha uma
horta no fundo do quintal com couve, almeirão, vagem, abobora e mandioca pro uso
da gente e pra da para os porcos.
Junto com outros meninos, a gente brincava de fazer
carroça. A gente usava uma cadeira como carroça. Primeiro a gente amarrava a
cadeira em quatro meninos enfileirados, um na frente do outro. A gente passava
uma corda pela cintura de cada um deles. Eles ficavam presos um no outro pela
cintura. Por último amarrava o encosto de uma cadeira. Um menino sentava na
cadeira e os quarto meninos saiam correndo, puxando a cadeira pela colônia. Quase
sempre eles capotavam a cadeira, se machucavam, quebravam a cadeira e apanhavam
dos pais.
Eu fui crescendo e passei a nadar escondido dos meus pais
no açude. A gente mesmo fazia o açude, empossando um córrego. Depois eu comecei
a roubar melancia dos outros vizinhos. Mas não era porque a gente precisava
não! A gente tinha melancia na nossa horta. Era só pelo desafio, pela emoção
mesmo! E logo eu aprendi a montar cavalo.
A copa de futebol do mundo de 1950 foi no Brasil.
Ninguém tinha radio na colônia porque não tinha eletricidade. O meu pai,
Ângelo, ia até a sede da fazenda ouvir os jogos no radio. Eu já tinha quase
treze anos. Enquanto meu pai ia ouvir futebol, eu e mais quatro meninos da
colônia pegavam os cavalos e ia apostar corridas. A gente fazia acrobacias e
manobras em cima dos cavalos, pulava do cavalo pro chão, depois de volta ao
cavalo. Depois pulava pro lado oposto, ao chão novamente e de volta para o
lombo do bicho. Os cavalos ficam suados! Até o dia em que o meu pai descobriu!
Acabaram-se as brincadeiras com cavalos! Mas, ele viu que eu sabia andar a
cavalo!
Na fazenda tinha uma vaca arisca que tinha medo das
pessoas. Um dia meu pai me chamou pra ajudar ele a separar aquela vaca das
outras. Ele montou um cavalo e eu em outro. Chegamos perto do grupo de vacas.
Meu pai começou a dar as coordenadas e eu fazia o que ele dizia. Eu entrei com
o cavalo no meio delas, cheguei perto dela e usando um chicote, fui empurrando
ela pra fora do grupo.
Eu consegui. Mas, enquanto olhei pro meu pai, todo
contente, ele me deu sinal de que a vaca tinha voltado para o grupo. Fui atrás
dela e tirei ela do grupo novamente. Mas
ela era teimosa e insistia. O rebanho já tava agitado com aquela confusão.
Depois que eu tirei a vaca do grupo, ela começou a correr. Eu, sobre o cavalo,
corri paralelo a vaca. Ela entrou no meio do mato correndo e eu atrás dela. Meu
pai me perdeu de vista, mas não foi atrás, ficou perto do rebando esperando.
Meu pai não permitia que eu desistisse. Eu não desisti. Eu era mais teimoso do
que a vaca! Eu me arranhei todo nos galhos das arvores e cheguei a me cortar,
mas sai do meio do mato com ela ao meu lado. Eu estava machucado, mas venci a
vaca pelo cansaço.
Em 1951 o patrão pediu que o Ângelo trabalhasse com
ele cuidando de animais, tombando terra com o trator e transportando milho da
lavoura para o celeiro. O meu irmão Antonio passou a ser o responsável pela
roça. Ele já estava com 19 anos e eu com 13. A partir de então eu comecei a
ajudar na roça. Trabalhava com o Antonio e o Geraldo. A gente tinha muito medo
do meu pai. À noite, durante a janta, o Antonio tinha que prestar conta do que
fizemos na roça, por isso, durante o dia ele pegava no me pé e do Geraldo, os dois
menores para trabalharem mais.
O Antonio separava as ruas de café: uma para ele e
deixava duas pra mim e pro Geraldo. Cada um ficava responsável por sua rua. Enquanto
o Antonio pegava o café no vão, eu deixava ele ir na frente até ficar longe.
Então eu parava o serviço, pegava o estilingue e ia matar passarinho. Quando eu
via um grupo, eu corria atrás dos passarinhos, me distraia e acabava me
perdendo. Os meus irmãos, quando sentiam a minha falta, paravam o serviço pra me
procurar. À noite, quando meu pai chegava em casa, o Antonio contava tudo pra
ele. Sempre sobrava pra mim!
Um dia o Geraldo tava afiando uma enxada com uma
lima, uma lâmina metálica usada para afiar enxadas. O Antonio começou uma discussão
com ele. O Geraldo disse que ia jogar a lima no pé do Antônio. O Antonio
desafiou: “Duvido você fazer isso! Você
não tem coragem!” O Geraldo não pensou duas vezes. A lima fincou no pé do Antonio
e o sangue começou a jorrar. Eu e o Geraldo tivemos que ajudar ele a voltar pra
casa. Quando o Ângelo chegou em casa e soube do que acontecera, sobrou pra todo
mundo, até pra mim. Ele bateu nos três com cinta e vara, deixando marcas nos
nossos corpos. O Antonio que já era quieto por natureza, ficou um bom tempo sem
falar com o Geraldo e seu pai.
Um dia minha mãe pediu pra eu ficar em casa e ajudar
ela a pegar excremento de vaca do pasto e trazer pra secar e fazer esterco para
a horta. Ele iria pro café mais tarde ajudar os dois irmãos. Da cozinha ela
ouviu uma galinha piando na casa ao lado, que era germinada a nossa. Ela me
chamou e ordenou: “Sobe aqui na parede e espia
por cima. Eu acho que é a nossa galinha que sumiu!”. Eu fiz o que ela
mandou. Eu vi a galinha e confirmei. Logo depois, minha mãe ouviu a voz da
vizinha e foi tirar satisfação com ela. A vizinha se defendeu: “A galinha entrou lá sozinha!”. Minha mãe
chamou ela de ladrona e voltou pra dentro de casa. Mas a discussão não parou
por ai. Elas discutiram de dentro da casa, pois podiam ouvir pelo vão da parede
entre o telhado. A vizinha desafiou minha mãe: “Se você for mulher vem pra fora!” A Virginia saiu com uma vassoura,
mas a vizinha com uma foice. Minha mãe bateu o cabo da vassoura no braço dela.
A foice caiu no chão. As duas se agarraram e começaram a brigar. A minha mãe
levou a melhor. Ela levantou, agarrou a vizinha pelos cabelos e acabou
arrastando ela. Eu ia atrás chutando a mulher. Precisaram chamar o medico pra cuidar
da vizinha. Mas ninguém se meteu no assunto! 5
O Antonio e Geraldo pegaram uma doença nos olhos. Chamavam
a doença de gata cega. Eles não conseguiam enxergar a noite. Foram orientados
pelos vizinhos a cozinharem fígado fresco de boi e fazer uma emulsão. Não
lembro direito se eles colocavam a mistura no olho ou só ficavam na frente da panela e deixavam o vapor
pegar nos olhos. Eles nunca foram ao medico ver isso! Toda sexta-feira, eu e o Geraldo
ia à pé, até o batedouro, pegar fígado para a semana toda. A gente andava uns dezesseis
quilômetros. Enquanto a gente esperava matar os bois, a gente sentava e ficava
olhando as maquinas trabalhando na construção da rodovia. É a rodovia que vai
de Bebedouro até Barretos. Com o tempo os dois sararam!
Era costume nos domingos os três irmãos irem com três primos caçar nhambu, um tipo de passarinho que faz ninho no chão, no meio do colonião, um tipo de capim, à sombra. Eu e um primo menor entrávamos no mato e fazia barulho pra assustar os pássaros. Eles corriam assustado da gente e davam de cara com os maiores que atiravam com uma espingarda. Quase me acertavam os tiros, e o meu primo também!
Num domingo, Geraldo jogou futebol e depois chamou os
primos para caçar nhambu. Na volta todos vinham contando suas aventuras, mas
Geraldo estava quieto e reclamou de dor de cabeça. Ao chegarem em casa, ele reclamou
pra minha mãe que a dor tinha aumentado. Minha mãe deu uma aspirina pra ele e
ele foi deitar. Passou algum tempo, minha mãe voltou e perguntou pra ele: “Meiorô?”. A resposta foi não. Por volta
da meia noite ele não falava mais, só gemia. O Antonio chamou o meu pai e disse
que tinham que fazer algo. O Ângelo saiu de casa e foi atrás de um curandeiro. Eles
voltaram às cinco horas da manhã. O Geraldo não conhecia mais ninguém, só
gemia. O meu pai Ângelo voltou a sede da fazenda pra telefonar para um médico
na cidade de colina. Podia vir de taxi, era urgente! Quando o médico chegou, eu
estava sentado do lado de fora da casa com as outras crianças, meus irmãos, o
Varisto, a Zumira e o Nego. Então eu ouviu o choro desesperado da minha mãe que
vinha lá de dentro da casa. Em seguida o Antonio saiu chorando e gritando: “O Geraldo morreu!”
Quando o médico chegou já era tarde. Meu irmão já
estava morto! Geraldo tinha quase 16 anos de idade. Era agosto de 1951 e fazia
frio. O corpo foi velado durante o dia e depois à noite. Naquele dia minha mãe não
fez almoço. Eu queria comida e as crianças também. Chegava um monte de gente em
casa pra ver o Geraldo no caixão. As mulheres rezavam e cantavam ladainha. Eu
lembro que tinha muitos negros no velório. Eles bebiam pinga e tomavam café
para não dormirem. Na manhã seguinte a família ficou em casa. Os parentes e os
amigos saíram carregando o caixão e sumiram na estrada no meio do mato. Eles
foram caminhando, revezando pra carregar o caixa até chegar no cemitério da
cidade. Foi um dos dias mais tristes da minha vida!
Fazenda Retiro (1952 – 1961)
Logo depois mudamos da fazenda Recreio para a fazenda Retiro. No Retiro a
gente era colono, empregados no café. Meu pai só recebia uma vez por ano. Então
a gente faziam compras na venda do Luiz Zapella. A gente tinha horta em casa,
mas precisava comprar farinha de trigo pra minha mãe fazer pão, vassoura e
coisas que não podiam fazer em casa. O Zapella marcava tudo na caderneta e meu
pai só pagava no final do ano. Meu irmão Gusto tinha dez anos quando a gente
mudou pra lá. O Zapella tinha uma filha que chamava Célia e o meu tio
Augusto, irmão do meu pai, se casou com ela em fevereiro de 1966, quatorze anos
depois.
Eu tinha 15 anos e era bem alto pra minha idade. Eu
comecei a sair com os rapazes mais velhos. Também comecei a criar pombos. Eu
fazia casinhas para eles e colocava o pombal no alto, em cima de postes de
madeira. Eu fazia trocas com outros amigos de pombos brancos com marrons. Eu gostava
da vida na fazenda Retiro!
Os moços mais velhos me aceitaram no grupo, mas me
desafiavam o tempo todo. Eu era obrigado a fazer coisas como esvaziar o pneu do
carro do patrão, administrador ou dos tratores da fazenda. Os meus amigos mais
próximos, eram o Adão Bailarim, Fiori Segatti e o Zequinha. Tinha mais de vinte
rapazes na mesma faixa de idade, mas nós quatro eram inseparáveis e um
desafiava o outro chamando de covarde e fazendo chantagens. Na sexta-feira
santa, o povo acreditava que Deus tava morto e por isso não via nada, assim a
gente podia fazer arte! Os moços mais velhos pediam pra mim soltar os bezerros,
que normalmente ficavam separados das vacas durante a noite. Os bichos mamavam
a noite toda e de manhã, quando os pais iam ordenhar as vacas, não tinha leite.
Quando tinha festa religiosa, os mais velhos seguiam a procissão. Então os
moleques colocavam estrume de vaca nas tramelas da porteira da fazenda. Quando eles
voltavam, depois da meia noite, no escuro, não viam e sujavam as mãos de merda.
Tinha também leilão de rosas feitas de papel crepom.
O rapaz que comprava a rosa escolhia uma moça para dar a rosa e dançar e ainda
podia escolher a musica. Em alguns casos quando um rapaz escolhia uma moça que
não aceitava a rosa ou uma que já era comprometida, começava uma briga. Alguém
jogava uma pedra no lampião para quebrá-lo e ficar escuro, as moças começavam a
gritar e a correr e assim acabava o baile. Algumas moças iam acompanhadas por
um capataz que era responsável pelas moças. Eles acalmavam os moços dizendo que
se eles contassem aos pais delas o que tinha acontecido, elas não viriam no
próximo baile.
Eu tinha 16 anos, mas eu era muito tímido! Eu não
tinha coragem de convidar as moças para dançar! Meus amigos me incentivaram a
beber e a fumar. Eu não gostava, mas fazia pare me sentir enturmado e também
cativar as moças. Com 17 anos eu não precisava mais disso! Eu e meus amigos não
se misturava com os rapazes da cidade, a maioria morava e trabalhava na roça.
Algumas vezes, tinha reza de terço na casa de alguém
na colônia. Depois do terço o anfitrião servia chocolate com leite ou licor de
anisete para os presentes. Uma vez, em um desses terços, a Aparecida, uma moça
que tava servindo bebida, disse bem alto, pra todo mundo ouvir: “O Reinaldo vai ser o primeiro a ser servido!”
Foi a maior gozação. Logo todo mundo brincava dizendo que a gente tava namorando!
A Carola, uma senhora casada passou a ajudar a gente, facilitando para que nos
dois se encontrasse na casa dela. Mas não durou muito tempo. A Aparecida tinha
acabado um namoro fazia pouco tempo com outro rapaz. Dois meses depois, quando ele
soube que ela tava de namoro comigo, veio atrás dela. Ela resolveu terminar comigo
e reatar o namoro com o antigo namorado.
Eu tava apaixonado por ela. Eu fiquei arrasado! Parei
de jogar futebol e não saia mais com meus amigos. No inicio eu sentia uma
mistura de saudade e raiva. Mas logo a raiva virou ódio. Um dia eu quase dei uma
pedrada na cabeça dela. Dois anos depois a Aparecida foi abandonada novamente
pelo namorado. Logo começaram a fofocar e eu fiquei sabendo que ela queria
voltar a namorar comigo. Então eu resolvi me vingar dela. Eu procurei por ela e
convidei pra ir a um baile juntos. Como era de costume, a gente ia todos juntos
numa turma caminhando. Durante a caminhada, os casais se separavam e ficava
distante uns três metros do outro conversando. Quando chegamos perto do local
do baile, eu segurei o braço da Aparecida e pedi pra ela esperar. Eu olhei bem
dentro dos olhos dela e perguntei: “Você
tem algum paquera no baile?” - Ela respondeu: “Não, por que?” – Eu respondi logo em seguida: “Porque eu tenho!”
Era mentira. No baile, eu acabei ficando com uma moça
que gostava de mim, mas eu nem tava interessado. A Aparecida chorou e não
dançou a noite toda. Quando a gente voltou do baile, ela tirou satisfação comigo.
Eu pedi pra ela ir procurar o ex dela. Nunca mais eu falei com ela e nunca mais
eu dancei com ela. Perdi a namorada e perdi também um amigo.
Um dia, um dos meus amigos, vindo do trabalho na
roça, todo sujo, ficou com vergonha de passar na frente da casa da namorada.
Pra não passar em frente às casas da colônia, ele resolveu atravessar o açude
nadando com roupa e tudo. Não conseguiu terminar a travessia, afogou-se e
morreu. Eu perdi um amigo de futebol!
Por cinco anos, na fazenda Retiro, minha rotina era
trabalhar no café de segunda a sexta. No sábado eu trabalhava até o meio dia. Passava
a semana inteira esperando o final de semana. No sábado a tarde eu cortava o
cabelo e a noite ia em um baile. Dormia no domingo até tarde e depois do almoço
jogava futebol. Algumas vezes tinha torneio de futebol. O time de uma fazenda jogava
com outra. Eu passei a jogar no time uniformizado da fazenda. Eu jogava em
fazendas vizinhas também. A audiência era na maioria de homens, mas vinha muitas
moças assistir as partidas também. As moças davam volta em torno do campo durante
o jogo pra paquerar os moços e arrumar namorados. Num desses torneios, eu conheceu
uma moça chamada Dolores. A gente começou a namorar, mas eu nunca gostei muito dela.
Namorava, mas não estava apaixonado! Às vezes o pai dela não a deixava ela ir a
um baile, e eu dançava e beijava outras moças.
Neste ínterim, o meu irmão Antonio conheceu a Clair que morava numa fazenda vizinha e com 20 anos de idade ele casou com ela. O Antonio era diferente! Ele era quieto, calado e não tinha muitos amigos nem jogava futebol. Desde menino, quando aprendeu a cortar cabelo, abriu uma barbearia na casa e as pessoas vinham cortar cabelo com ele. Eles tiveram uma filha logo depois, mas ela morreu com 25 dias de vida.”
Fim
Minha intenção era continuar a entrevista com meu pai
e saber como foi sua vida à partir daqui. Mas por falta de tempo ou
oportunidade, acabei não o fazendo. Então sua biografia, a versão dele da história
termina por aqui. Depois disso meu tio Antonio e Clair tiveram a Zenaide em
setembro de 1954 e em novembro meus avós o Ângelo e Virginia tiveram o Luiz
Paulo Sarti o irmão caçula do meu pai. No inicio de 1959 meu pai se casou com
Maria Aurélio. No mesmo ano nasceu e morreu Aparecida de Fátima, a primeira
filha do casal. Também morreu a Nega (Lourdes), irmã do meu pai. Em 1960 nasceu
a Elza, que passou a ser a filha mais velha de Reinaldo. No final de 1961, o
pai de Reinaldo, Ângelo, seu tio Marcelo e toda a família mudaram-se da fazenda
Retiro para a fazenda Jangada em Barretos. Meu tio Antonio continuou na fazenda
Retiro.
As fotografias nessa postagem são da fazenda Carro Queimado, antiga fazenda Retiro. São fotografias tiradas por mim mesmo há mais de 10 anos.
Notas e Referências
- Mangueirão ou Mangueira: Uso regional é um curral usado em trabalhos com gado manso e bravo, localizado próximo à casa principal e feito de pedra, pau a pique, varas etc.
- Vassoura é uma planta parecida com o sorgo. A diferença está no cacho, bem mais flexível.
- Colonião – Capim-da-colônia, capim-guiné.
- Canga, peça de madeira us.
para prender junta de bois a carro ou arado; jugo. Segue o relato de José “Também
conhecida como “quaieira”, ou “culeiro”. - vai no pescoço do animal, (...) bota
nas costas, chama “selote”, pra botar no espinhaço pra puxar (trata-se um
objeto em forma triangular que se encaixa nas costas do animal para facilitar o
comando e a tração do carro, também de estrutura de ferro com revestimento de
couro). Essa aqui é a “cabeçalha”, vai ficando bonito, vai nos olhos, só que
ele não vê, vai tapado, só vê pra frente, e tem a “rabichola” que é de botar
atrás pra carroça ou o carro não ir pra frente.” (José Severiano da Silva, Ouro
Branco, 2016).
- Essa história foi contada várias vezes por outros irmãos do meu pai, mas eles não tinham certeza do motivo da briga. Essa é a versão de Reinaldo Sarti.
Amei. Comecei a ler e não consegui parar até o fim. Conheci seus pais nós anos 1970 quando comecei a estudar a Bíblia.
ResponderExcluirDevia entrevistar sua mãe.
O lado dela da história deve ser interessantíssimo. Ele gostava de contar como se conheceram. Desculpe a intromissão. Obrigada por publicar.
Show de bola. Sou Sarti também e minha família também veio de Castelguglielmo
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